E Rodrigo Maia falou! Não disse o que disse, e disse o que não disse

Bolsonaro e Maia

Em regime de isolamento social, e grupo de risco mais ainda, fico em casa tentando achar o que fazer. Um livro aqui, uma série de TV acolá, e notícia 24 horas o tempo todo, por mais que tente resistir. Uma coisa que o isolamento faz é você perder a medida do tempo, como se fim de semana nunca existisse e como se toda hora fosse qualquer hora. Por isso não sei bem a hora em que a musiquinha do Repórter Esso tocou – e aqui acabo de entregar mais ou menos a minha idade. Do jeito que as coisas estão, parei tudo o que não estava fazendo e me atirei pro sofá pra esperar a bomba: Bolsonaro renunciou! Ou: general Augusto Heleno ameaça greve de fome se o Augusto Aras mandar entregar o celular do há pouco referido.

Mas não! Lá estava na tela, estoicamente se preparando para falar a um plenário vazio o jovem presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Claro que o pensamento veio na hora: ele aceitou algum das três dezenas de pedidos de impeachment que estão sobre sua mesa. E já fiquei imaginando o bafafá.

Ofeguei.

Deputada Joice Hasselmann – Foto Orlando Brito

Solene, Maia começou a falar. Discurso sóbrio, sem floreios, e quanto mais eu ouvia, mais a desorientação temporal se acentuava. Foram primeiro grave palavras de solidariedade às milhares de famílias de vítimas da pandemia. Pensei: mas isto não teria que ter sido dito semanas atrás? Por que só agora? Depois, palavras ainda mais graves sobre harmonia entre os Poderes, democracia. De novo o pensamento: mas isto não é o que a Constituição já diz? Como ele, logo no início referiu-se a Ulysses Guimarães, me deu aquele branco: estaria sonhando? Voltei a 1998? Mais adiante, e nessa altura, além de desorientado, já estava ficando meio desinteressado, pareceu que Rodrigo Maia elogiava o governo por estar articulando a sua base parlamentar. Aí a confusão foi total: Joyce, Frota, Olímpio, Delegado Valdir, Bivar, PSL – será que o Bolsonaro vai juntar isso tudo de novo?

Por sorte, ou azar, não sei bem, notícia 24 horas tem um sem número de comentaristas abalizados, e respirei aliviado. Além de intérpretes da realidade, elas e eles costumam ter fontes privilegiadas, quando não recebem discursos como o que acabara de ouvir com antecedência. Vai ficar tudo esclarecido.

Inicialmente, ouvi que Rodrigo Maia decidira fazer aquele pronunciamento para responder, em nome do Parlamento, à ameaça do Augusto Heleno, da sexta passada. Ameaça de dar um golpe de Estado se o Celso de Mello não voltasse atrás no seu pedido à PGR para que apreendesse o celular do Bolsonaro (a propósito, fico só imaginando o circunspecto e pudico ministro a ouvir, resignado, os impropério – e aqui eu é que estou sendo pudico – do Presidente da República -, ruborizado, a olhar para os lados, checando se alguém o estava vendo a cumprir a insólita tarefa).

De novo a desorientação: mas ele não é só presidente da Câmara? Cadê o Alcolumbre, que preside o Congresso? Pegou covid? Isto não foi semanas atrás? Mas a segurança com que o comentarista afirmava a nobre intenção de Maia quase me convenceu. O que só não aconteceu porque o comentarista seguinte, em verdade, uma comentarista, agregou um viés que achei mais convincente: neste momento em que o governo parece mesmo rearranjar a sua base de apoio no Congresso, Rodrigo Maia não quereria ser visto, como às vezes parece, o líder da oposição no Congresso. Isto de um lado. Do outro, a comentarista continuou: se o governo ajeitar mesmo a base, Maia não quereria ser visto com o líder da situação.

Ex-deputado Eduardo Cunha – Foto: Orlando Brito

Foi aí que a chave para se entender o extemporâneo discurso do Presidente da Câmara apareceu, ao ser pronunciado o vocábulo Centrão. O comando mágico, o Abre-te Sésamo, que há décadas abre as burras dos governos aos atos pouco republicanos daquele grupo de parlamentares que, pouco tempo atrás, foi comandado por Eduardo Cunha. Centrão que hoje se reorganiza, de novo devidamente entesourado, para garantir que Rodrigo Maia não se anime, como Eduardo Cunha se animou, a mandar pra frente o impeachment de um Presidente da República. Com a diferença abissal que Cunha mandou para o patíbulo uma mulher honesta, que crime de responsabilidade algum tinha cometido, e que, com acertos e equívocos, tinha um compromisso inarredável com a democracia e com o bem estar do povo brasileiro.

Enquanto isso, Rodrigo Maia, sob o pretexto de defender a democracia contra as ameaças de um general imbecilizado, não diz o que deveria, de forma inequívoca, dizer. E se resguarda diante de seus pares, dizendo, mas sem o dizer, que deixará passar impune um presidente que solapa a democracia e que, com a maldade pura que lhe infesta a alma, manda para a morte milhares de brasileiros todos os dias. Brasileiros, e brasileiras, com cujas famílias Rodrigo Maia, 25 mil mortes depois, afirma hoje se solidarizar.

Concluo consternado o que comecei galhofeiro, porque às vezes a realidade nos soa tão absurda que só a ironia nos permitiria expressá-la adequadamente. Entretanto, diante do massacre sanitário e político que estamos vivendo, não há ironia que se sustente muito tempo. Sequer o tempo que usei para terminar estas mal traçadas.

*Professor Emérito
Faculdade de Comunicação
Universidade de Brasília (UnB)

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