Há poucas semanas, deparei-me, incrédula, com a cena de um certo indivíduo, lépido e esvoaçante, pilotando um jet ski pelas tranquilas águas do Lago Paranoá em meio a maior pandemia da história recente da humanidade.
Agora, mais uma vez, fui surpreendida com a figura saltitante e sorridente de um cavaleiro montado em seu cavalo alazão, galopando pela mais famosa praça do Planalto Central, a despeito do traço eminentemente urbano daquele sítio turístico e – mero detalhe – da permanência e piora no quadro epidêmico no país.
Os dois episódios imediatamente remeteram-me à lembrança de uma antiga crônica do incrível Luis Fernando Veríssimo. Chamava-se Pôquer Interminável.
No texto de Veríssimo, 5 jogadores viciados em pôquer não conseguiam sequer se levantar da mesa onde jogavam há dias ou semanas, tamanha a absorção neles mesmos, a imersão em seu pequeno universo obsessivo.
“Ninguém sai”! Este era o jargão repetido pelos jogadores ensandecidos, alheios a tudo e a todos.
A esposa de um mandava chamar e o jargão era lembrado: – “Ninguém sai”.
A família estava sem dinheiro. -“Ninguém sai”.
O filho de outro estava nascendo! Mais uma vez o jargão vinha à tona: – “Ninguém sai”.
A mulher do terceiro o tinha abandonado porque este não aparecera em casa por duas semanas. “Ninguém sai”.
O texto retrata, com o humor peculiar do famoso cronista, o egoísmo dos jogadores contumazes, a prisão que circunda seus hábitos obsessivos, traços estes ali elevados ao superlativo, ao absurdo, ao infinito.
A lembrança da crônica foi automática. A visão daquele que tem histórico de atleta perambulando pela cidade paralisada pelo isolamento social pareceu-me similar ao retrato traçado por Verissimo há mais de 30 anos. Por dois motivos.
O repetido mote “Ninguém sai” foi o primeiro deles, pela proximidade (mas com sentido diverso) com o atual “Fica em casa” em que estamos – todos – mergulhados em razão da quarentena e distanciamento social impostos pela pandemia.
O segundo – e mais importante – pela demonstração grotesca de egocentrismo do autoproclamado atleta e seu total descolamento da realidade circundante. A obsessão cega por si mesmo e o desprezo absoluto pelas necessidades, dores e luto dos outros pareceram-me quase inacreditáveis, elevadas ao superlativo, ao absurdo, ao infinito, tal como apontei em relação aos personagens da crônica, só que agora na versão real. O que era caricato e engraçado na ficção virou triste e doída realidade.
E o teatro do absurdo prossegue: – Sr., hoje foram 730 mortos! – disse algum transeunte desavisado.
E daí? “Eu” vou andar de jet ski!
O Brasil virou o epicentro da pandemia mundial! – lembrou algum assessor.
“Eu” vou cavalgar e cumprimentar meus eleitores, meus apoiadores!
Entre seus apoiadores, o cenário da noite anterior nos mostrou um pequeno grupo mascarado, segurando tochas e brandindo contra a democracia, num ritual que evoca um passado sinistro.
Os diálogos são hipotéticos. Os fatos, você sabe, são inacreditavelmente reais.
Triste trajetória de um cavaleiro cada vez mais solitário.
Pensativa, relembrei o mote dos jogadores: – Aqui em casa, “Ninguém sai”.
#fica em casa
* Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada (Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região).