Estamos enfrentando uma pandemia de proporções globais como não era vista desde 1918 e que precisa ser combatida com o máximo de seriedade. Entretanto, diferente do que aconteceu em pandemias do passado, a covid-19 encontrou a humanidade com altíssimo grau de desenvolvimento médico-científico, além de um sistema de comunicação universal e quase instantâneo. A partir de uma abordagem ampla e científica, fizemos um diagnóstico do grave quadro atual. Com base nesta análise, estamos propondo a discussão de medidas práticas que, ao mesmo tempo em que visam combater o coronavírus e proteger a saúde e a vida dos doentes, preservam ao máximo a saúde de nossa economia. Uma recessão profunda que certamente se seguirá a um shutdown prolongado do país irá inevitavelmente criar desemprego em massa e um sofrimento enorme para as camadas mais vulneráveis da nossa sociedade. É imperativo reconhecer este fato enquanto evoluem as medidas de combate à doença.
Vivemos em um momento de grande avanço, exponencial, na medicina e na tecnologia. Temos ferramentas que nossos antepassados nem sonhavam em 1918 para analisar o coronavírus, seu padrão de disseminação e mecanismos de ataque. Portanto, a melhor maneira de combater este inimigo invisível, mas poderoso, é com conhecimento científico e tecnologia, armas que o vírus não dispõe.
Temos infinitamente mais condições de combater a pandemia do que em qualquer outro período da história da humanidade. Porém, de nada serve a evolução do nosso conhecimento sem serenidade, equilíbrio e análise criteriosa dos fatos e opções.
Entendemos que decisões difíceis precisam ser tomadas diariamente com informação imperfeita e que afetam as vidas de milhões de pessoas. Parte dos governantes, neste cenário de incerteza e agindo com a melhor das intenções, está adotando medidas drásticas com receio de uma explosão incontrolável da epidemia e de parecerem lenientes.
Devemos, sim, copiar o que deu certo. Lembremos, no entanto, que fomos bem-sucedidos no combate a epidemias recentes, como a do HIV, quando fomos exemplos para o mundo, valendo-nos da ciência, da serenidade e do equilíbrio.
Até aqui, desde o final de 2019, quando tivemos as primeiras notícias da nova ameaça, muito tem sido discutido e proposto em relação ao manejo da pandemia da covid-19, focando em isolamento social, quarentena, fechamento em massa de empresas e negócios. Ou seja, um shutdown, uma paralisação da atividade econômica. Embora o shutdown por um período curto, de 15 dias como está sendo realizado, possa de fato ajudar na organização do combate a epidemia, esta estratégia é claramente insustentável por longos períodos.
A compreensível apreensão com a doença e o imperativo de reduzir o contágio e salvar vidas criou um falso dilema. Ou você está querendo salvar vidas, ou você só pensa na economia, sem consideração pelos afetados pelo vírus. Parece que não é permitido questionar, apenas repetir o mantra: “fique em casa”.
Isto desconsidera o enorme impacto humanitário e social de uma recessão econômica profunda, que afeta principalmente os segmentos mais vulneráveis da população. Como descrevemos neste artigo, existe evidência científica clara de que recessão em países em desenvolvimento, e mesmo em países desenvolvidos, aumenta a mortalidade em geral, mas em particular nos grupos social e economicamente mais vulneráveis.
O texto abaixo é uma proposta para reflexão que busca reconciliar a retomada rápida da atividade econômica com a minimização do risco associado com a epidemia da covid-19. A meta é conseguir, simultaneamente, reduzir os efeitos danosos na economia e nas populações mais suscetíveis a desenvolver quadros graves associados ao coronavírus.
Evidentemente, muitos detalhes precisam ser aperfeiçoados. A operacionalização de algumas destas medidas é um desafio enorme, que vai demandar intensa colaboração entre governo e sociedade. Existem riscos importantes que ainda estamos compreendendo, a medida em que avança o conhecimento sobre a doença. Comentários, críticas e contribuições são extremamente úteis e bem-vindos. Nossos emails estão no final deste artigo.
Uma circunstância, porém, é essencial: não há tempo a perder. A cada dia que passa, as consequências nefastas que advirão serão devastadoras, talvez incontornáveis.
Como forma de tornar mais didáticas estas propostas e estimular o debate, dividimos o artigo em duas partes. Primeiro, as considerações sobre o quadro atual. Depois, a proposta propriamente dita.
O diagnóstico do quadro do coronavírus no Brasil
1) Mais de 70 anos e pessoas com doenças pré-existentes, as vítimas preferenciais. A covid-19 apresenta risco principalmente para pessoas com mais de 70 anos e com doenças graves pré-existentes (doença crônica cardiovascular, respiratória, pacientes com câncer, imunossuprimidos, etc.).
2) Menos de 60 anos e sem doenças, menor impacto. O impacto em pessoas com menos de 60 anos e sem doenças pré-existentes parece ser mais similar ao da influenza sazonal (os surtos de gripe que ocorrem anualmente nos meses mais frios do ano). Na Alemanha, país onde o teste para covid-19 foi inicialmente desenvolvido e onde uma ampla amostragem da população foi testada, a mortalidade geral também é próxima à da gripe sazonal.
3) Quarentena indiscriminada não é eficiente. Não há garantias de que após um período de quarentena rigorosa da população, mesmo que prolongada, a covid-19 não irá continuar provocando surtos e infectando a comunidade. Pelo contrário, o mais provável é que na ausência de uma vacina (que pode levar anos ou nunca ser desenvolvida, vide caso do vírus HIV, outro RNA vírus assim como o coronavírus), uma população sem imunidade irá desenvolver a doença de forma continuada e em surtos eventuais.
4) Quarentena de idosos é mais eficiente. A quarentena prolongada dos grupos de risco (que são a imensa maioria dos que necessitam internação e terapia intensiva) pode atenuar suficientemente a curva de internações hospitalares, de modo a evitar uma sobrecarga do sistema. Ao mesmo tempo, libera o grupo de menor risco para a retomada da atividade econômica. Este é sem dúvida o maior desafio operacional, como isolar este grupo do contato com jovens mais expostos ao vírus, em particular em comunidades mais carentes. Uso de hotéis e escolas vagas devido a epidemia, hospitais de campanha, prédios públicos, são algumas das ideias iniciais que vem sendo utilizadas em outros países.
5) Brasil não é Europa. É possível que em países tropicais como o Brasil, com incidência de raios ultravioleta e calor muito acima do hemisfério norte, a propagação do vírus seja substancialmente atenuada. Isto ainda não foi devidamente estudado no caso do coronavírus, mas é fartamente documento para um grande número de patógenos similares. Além disto, a população mais jovem certamente será mais resiliente à covid-19.
6) Recessão mata. A recessão econômica e o desemprego comprovadamente aumentam a mortalidade da população em geral, particularmente nos grupos mais vulneráveis e desfavorecidos da sociedade. Em estudo da Fiocruz, FGV e Imperial College, publicado na revista The Lancet Global Health, o aumento do desemprego entre 2012 e 2017 no Brasil causou um excesso de mortes de 31.415. Outro estudo da prestigiada revista médica The Lancet mostrou um excesso de 260 mil mortes por câncer após a recessão de 2008-2009 nos países (ricos) da OCDE. A mortalidade infantil aumentou no Brasil em 2016 após 26 anos de baixas consecutivas. Recessão mata, e uma quarentena prolongada poderá causar níveis de recessão e desemprego nunca vistos no Brasil.
7) Mais pobres sofrem mais. A camada mais vulnerável e pobre da população, trabalhadores autônomos, pessoas em situação de pobreza extrema, desempregados, moradores de comunidades serão os mais afetados pela recessão.
8) Caos econômico e social não é ficção. O caos econômico e social, com risco de conflagração, resultante de uma recessão sem precedentes poderá causar mortes e destruição muito maiores do que a covid-19.
9) Bons exemplos. A Coreia do Sul, Japão e Cingapura demonstraram que é possível evitar a escalada geométrica do contágio sem recorrer a um shutdown da economia.
10) Casos graves altamente concentrados nos grupos de risco: Busquemos os dados oficiais do Ministério da Saúde italiano de 17 de março último. Primeiro, as mortes se concentraram na Lombardia (71,1% do total no País), que demorou a adotar as medidas preventivas, apesar do alerta vindo da China e do rigoroso inverno europeu sugerirem precaução. Na Itália, a idade média dos mortos pela covid-19 foi de 79,5 anos (homens) e 83,7 anos (mulheres). Apenas 30% das vítimas eram mulheres. Em média, as vítimas já tinham 2,7 outras enfermidades graves, como câncer, diabetes ou doenças cardíacas. Até esta data (última terça), somente 5 mortos tinham menos de 40 anos, sendo que todos eram homens e tinham doenças graves anteriores. Ninguém com menos de 30 anos morreu.
11) Em dose errada, o remédio vira veneno. Em editorial (Rethinking the Coronavirus Shutdown), o Wall Street Journal propõe repensar o colapso que pode advir da paralisação da economia por conta do coronavírus. O prestigiado periódico prevê um “tsunami de destruição econômica que vai provocar a perda de milhões de empregos, já que o comércio e o setor produtivo simplesmente pararam”. Nada muito diferente do que se vislumbra aqui no Brasil se nada for feito. “Não existe dinheiro suficiente para compensar perdas desta proporção que estamos vendo caso esta paralisação continue por mais semanas”, alerta o WSJ. Se não aplicarmos a dose adequada, a quebradeira de milhares de empresas provocará a perda de milhões de empregos.
A proposta para combater o coronavírus
A decisão não é simples, de maneira alguma. As informações sobre a covid-19 ainda estão incompletas, mudam rapidamente e temos que decidir em cima destes dados, agora.
Não se trata apenas de “fique em casa” e ajude a controlar o vírus. E, obviamente, o vírus também não é “apenas uma simples gripe” que pode ser negligenciada.
O assunto precisa ser tratado com a máxima seriedade. Soluções proativas, criativas e embasadas em ciência devem ser propostas com urgência, e se necessário, adaptadas de acordo com indicadores epidemiológicos e de saúde pública (disponibilidade de leitos, saturação dos serviços de atendimento à população, etc.).
Em síntese, nossa proposta é o da retomada progressiva da atividade econômica em níveis mais próximos possíveis do normal, com a maior rapidez possível, preservando os grupos de risco – pessoas com mais de 60 anos e portadores de condições de saúde graves.
Como implementar as propostas para combater o coronavírus
1) Reabertura do comércio em 15 dias. Limitar a restrição econômica ao período já proposto de 15 dias pelos estados. Após este período, reabertura progressiva de comércio, restaurantes, shopping centers e outros negócios que foram fechados, com a estrita observação das outras medidas listadas abaixo. Fundamental realizar um constante monitoramento de indicadores epidemiológicos para, se necessário, fazer ajustes neste processo.
2) Quais ações adotar nestes 15 dias. O período de 15 dias será utilizado para desenvolver as várias políticas públicas e privadas mais urgentes e necessárias, incluindo: a) disponibilização de mais leitos hospitalares, particularmente de CTIs, respiradores, hospitais de campanha; b) aquisição de equipamentos de proteção para profissionais de saúde e envolvidos no combate direto à epidemia; c) elaboração de políticas para auxílio dos grupos que ficarão em quarentena prolongada (pessoas com mais de 70 anos e com doenças sérias pré-existentes); d) avaliação de novos tratamentos (hidroxicloroquina, azitromicina, remdesivir, etc.); e) desenvolver políticas de compensação de empresas com empregados dispensados de comparecer ao trabalho; f) políticas de incentivo para a economia, mecanismos de financiamento das medidas de prevenção, cortes no orçamento para financiar estas políticas.
3) Home office para quem tem mais de 60 anos. Pessoas com 60 anos ou mais e pessoas com doenças pré-existentes graves ficarão dispensadas de comparecer ao trabalho, podendo trabalhar em regime de home office. Este grupo continuará recebendo seus salários. Um mecanismo de compensação para os empregadores será proposto pela equipe econômica do Governo Federal, como, por exemplo, alívio fiscal e auxílio no pagamento dos salários. O mecanismo exato depende de avaliação detalhada.
4) Quarentena domiciliar para quem tem mais de 70 anos. Pessoas com 70 anos ou mais e pessoas com doenças pré-existentes graves ficarão em quarentena domiciliar por período indeterminado. Aqueles que estão empregados continuarão a receber seus salários e, sempre que possível, trabalhar em regime de home office. Políticas públicas de auxílio a estes grupos vulneráveis, como suplementação de renda, distribuição de alimentos e medicamentos, deverão ser desenvolvidas com urgência. Considerar medidas legais para garantir o isolamento destes grupos. Este é sem dúvida o maior desafio operacional da proposta e está fora do escopo deste artigo detalhar algumas das possíveis soluções já citadas.
5) Sem aglomerações. Restrição a eventos e aglomerações de pessoas continuarão em vigência por pelo menos quatro semanas.
6) Rigor máximo na higiene e limpeza do local de trabalho. Para as pessoas com menos de 60 anos que retornam ao local de trabalho, reforçar as medidas de prevenção propostas pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, destacando-se: a) qualquer pessoa com sintomas de tosse, febre, dor de garganta, sintomas gripais em geral deve ficar em casa por 7 a 14 dias; b) política liberal no sentido de dispensar qualquer trabalhador sintomático ou com suspeita de infecção, sem desconto de salário ou qualquer outro impacto negativo; c) quem chegar ao trabalho e apresentar sintomas deve ser isolado, com máscara até poder ir para casa; d) lavar as mãos com frequência por pelo menos 20 segundos com água e sabão; e) o álcool em gel deverá estar presente em todos os recintos de trabalho, banheiros, refeitórios, etc.; f) etiqueta de tosse e espirros, sempre tapando boca e nariz com lenço descartável ou braço; g) limpeza regular do ambiente de trabalho com produto desinfetante, se possível 2 vezes ao dia.
7) Mapeamento rigoroso e regionalizado dos novos casos. Acompanhamento rigoroso dos resultados com foco especial na lotação dos serviços médicos, para ajustes na política sanitária, eventualmente considerando retorno a uma quarentena mais rigorosa em cidades e regiões onde o número de casos graves estiver crescendo muito rapidamente.
Não custa repetir, esta ideia necessita ser amplamente discutida e deve ser aperfeiçoada. Mas estabelece bases racionais, amparadas em evidências científicas, para um rápido retorno da atividade econômica, minimizando os efeitos da recessão sobre os trabalhadores e a população em geral, e, ao mesmo tempo, reduzindo a velocidade do contágio nos grupos de maior risco, evitando uma sobrecarga do sistema de saúde.
Afinal, estamos no século 21. Preservar a saúde dos seres humanos e da economia não são objetivos incompatíveis.
* Fábio Jung é médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, post-doctoral fellow do MD Anderson Cancer Center de Houston, TX e MBA em Finanças e Health Care Management pela Wharton School da Universidade da Pensilvânia. EMAIL: fajung2005@gmail.com
* Mateus Bandeira é consultor de empresas, MBA em Finanças e Business & Public Policy pela Wharton School da Universidade da Pensilvânia, foi CEO da Falconi, presidente do Banrisul e secretário de Planejamento do RS. EMAIL: mateusbandeira@gmail.com