Desde a criação do Estado, em 1948, uma boa parte da diáspora judaica, provavelmente a maioria, nunca se permitiu entrar nos assuntos internos de Israel, sob o argumento de que cabia aos seus cidadãos, aqueles que fizeram aliá, decidir o seu destino dentro das regras democráticas. Dispersos pelo mundo, esses judeus temiam reforçar o coro da crítica à Israel e colocar o foco sobre si, traumatizados pelo histórico de perseguições.
O silêncio durou mais de 70 anos, precisamente até a formação do atual governo israelense, de longe o mais à direita que Israel já teve.
Hoje, face ao perigo que pesa sobre a democracia, judeus, de Israel e de fora, se manifestam. No país, em gigantescos protestos, os maiores jamais registrados, reunindo em todas as cidades centenas de milhares de pessoas. Fora de Israel, a diáspora se solidariza. No Brasil, grupos como os Judeus pela Democracia, Judias e Judeus Sionistas de Esquerda, o movimento Paz Agora e outros tomam partido.
Numa carta aberta publicada no Times of Israel, três jornalistas israelo-americanos disseram: “Os judeus da diáspora têm simultaneamente o direito e a responsabilidade de dizer não ao governo que destrói os fundamentos da sociedade israelense e a ética democrática.”
Nas últimas semanas, centenas de manifestantes foram detidos e dezenas deram entrada nos hospitais, dentre os quais um homem que perdeu a orelha, atingido por uma granada de atordoamento, e outro que morreu atropelado.
A causa que mobiliza o país é uma reforma proposta pelo governo, que permitiria à Knesset derrubar decisões da Suprema Corte com maioria simples, além de dar ao Parlamento o direito de adotar leis impossíveis de serem modificadas pelos juízes, mesmo em caso de flagrante ilegalidade. Em outras palavras, visto que Israel não tem Constituição e que se trata de um regime parlamentarista, o país estaria totalmente nas mãos do governo. Não existiria nenhum contrapeso institucional capaz de evitar um regime autocrático e teocrático. Ou seja, o primeiro-ministro teria superpoderes absolutos, ilimitados. Enquanto o Judiciário perderia sua independência, minando o Estado de Direito.
Os judeus deixariam então de se orgulhar do fato de Israel ser a única democracia do Oriente Médio.
Bibi, como o premiê é conhecido, argumenta que a mudança é necessária para tirar a Justiça das mãos de “magistrados elitistas e tendenciosos”.
Nada disto é por acaso: o primeiro-ministro estava na iminência de ser julgado por corrupção. Eis porque nomeou ministros com ficha suja, que, como ele próprio, se verão livres da Justiça graças ao novo texto legal. Um escandaloso toma lá, dá cá.
Como obteve apenas 32 dos 120 assentos no Parlamento, Netanyahu formou uma coligação de seis partidos, liderada pelo Likud, nos quais encontramos três de extrema-direita e duas forças representativas dos setores ultra-ortodoxos. O que decorre disto é evidente: a gestão de áreas sensíveis entre as mãos de partidos que de humanismo, democracia, laicidade e honestidade nada têm.
No entanto, alguns poucos judeus da diáspora continuam defendendo o silêncio. É inegável que quem tem a última palavra sobre a política israelense são os seus cidadãos, mas também é verdade que Israel conta – e muito – para todo o povo judeu, mesmo para aqueles que não têm a intenção de emigrar para Israel, dentre os quais me incluo. Israel é uma espécie de seguro de vida, de porto seguro para todos nós, judeus sul-americanos, europeus, americanos, africanos, asiáticos, vítimas frequentes do antissemitismo, de direita como de esquerda.
Também por isso, não somos indiferentes ao que se passa em Israel. Temos, quase todos, familiares no país e, para além disso, foi naquela terra que nasceu o povo judeu, onde forjou a sua identidade espiritual, ética, religiosa, ideológica e nacional. Uma terra cuja Declaração de Independência, de 1948, e leis sucessivas, garantiram o seu carácter democrático, a liberdade religiosa e onde os direitos cívicos são assegurados pela independência do Poder Judiciário e sua rigorosa separação do poder político.
Pois é exatamente este Israel que está em perigo com o governo de coalizão liderado por Benjamin Netanyahu, com participação de partidos ortodoxos de ultradireita, racistas, homofóbicos, misóginos, que a socióloga franco-israelense Eva Iliouz não hesita em taxar abertamente de fascistas.
Esta coligação governamental coloca em risco não apenas os alicerces do Estado como ataca o judaísmo laico, que permitiu a nossa sobrevivência, mesmo após o extermínio de um terço dentre nós. De acordo com uma pesquisa recente, 41% dos judeus israelenses são laicos e, em toda a população judaica, apenas 30% afirmam confiar no “Grão Rabinato”.
O escritor marxista norte-americano David Horowitz, fundador do movimento Nova Esquerda, nos Estados Unidos, qualifica o que se passa em Israel como um “golpe de Estado constitucional”. Outros comparam Israel aos regimes iliberais da Hungria, Polônia, Itália.
Um dos objetivos da coligação é impor a discriminação religiosa, que permite à extrema-direita ultra-ortodoxa até mesmo determinar quem é e quem não é judeu à luz da sua árvore genealógica e de sua tendência ideológica. O partido Shas apresentou um projeto de lei considerando passível de sanções a oração mista de homens e mulheres e as vestes “impudicas” no Muro das Lamentações. Enquanto Itamar Ben Gvir, ministro da Segurança Nacional, condenado por racismo e próximo da organização terrorista Kahanista, defende a separação entre homens e mulheres nas escolas, hospitais e outros lugares públicos.
Como se não bastasse, vários partidos da coalizão estão empenhados na anexação da totalidade da Cisjordânia, o que enterraria qualquer possibilidade de negociação futura, bem como a criação de um Estado Palestino. Gvir vai além, ao defender a deportação de todos os árabes, inclusive dos territórios palestinos, uma vez anexados. Assim, Israel ganharia um lugar definitivo no banco dos réus da comunidade internacional, dando razão àqueles que o acusam de ser um país colonizador, racista, onde reina a apartheid. Na melhor das hipóteses, palestinos e árabes israelenses passariam então a ser “oficialmente” cidadãos de terceira classe, uma vez que de segunda já o são. A paz seria para todo o sempre uma palavra vã.
A manter-se no poder, a coalizão poderá destruir a coesão da sociedade israelense, assim como os fundamentos da sua identidade democrática. 66% da população são contra a reforma em curso e quase 20% ameaçam retirar os seus capitais do país, enquanto outros se preparam para deixar Israel.
Yuval Noah Harari, um dos grandes pensadores contemporâneos, autor de Sapiens: uma breve história da humanidade, já avisou: se o projeto de lei for aprovado, irá para outro país.
Harari denuncia um golpe de estado em andamento.
Aparentemente, Bibi se mostra indiferente à insatisfação geral, pensando unicamente na permanência no poder e desta forma evitar a prisão; tanto assim que o projeto de lei tramita normalmente no Knesset, que já aprovou um artigo transferindo à maioria parlamentar a indicação dos magistrados da Corte Suprema. Reforma que o presidente israelense, Isaac Herzog, qualificou de “uma marcha para o abismo”.
Caso o projeto de lei seja adotado, o jornal Haaretz prevê uma guerra sem fim, que in extremis poderá destruir o próprio Estado de Israel.
Após o violento motim levado a cabo por numerosos colonos contra a cidade palestina de Huwara, na Cisjordânia, em resposta ao assassinato de dois irmãos judeus naquela cidade, o deputado de extrema-direita Zvika Vogel, presidente da Comissão de Segurança Nacional do Parlamento israelense, não hesitou: “Quero ver Huwara cercada e queimada.”
Bezalel Smotrich, outro membro extremista do governo, disse em entrevista que Israel deveria eliminar a cidade de Huwara e adotar uma solução radical que implicaria na morte de 7.000 habitantes. Palavras que até o Departamento de Estado norte-americano qualificou de “irresponsáveis e repugnantes”. A eliminação de populações rima com “solução final”.
Os judeus democratas, todos os judeus democratas, do mundo inteiro, têm a obrigação de apelar para o fim de uma coalizão que ameaça a democracia, o judaísmo progressista, o sonho de paz. No ar, ouve-se um grito de alerta contra o fascismo judaico que está destruindo Israel, depois de destruir os palestinos.
Israel perdeu a alma. Está na hora de deixar as coisas claras, nos seus devidos lugares. E o de Netanyahu é no tribunal e não à frente do governo.