Conversa de Botequim

Um programa de governo

Tive o privilégio de passar uma longa temporada, um pouco mais de sete anos, dividido entre o Rio de Janeiro e Brasília. Na antiga capital, morei em três bairros, cada um com características distintas. Levei de Brasília e da profissão a cultura do bar. Considero que esse espaço representa o que há de mais parecido com as milenares ágoras gregas, fundamentais para a criação da democracia. Nos botequins, todos têm opinião, a hierarquia surge naturalmente e pode ser contestada por qualquer frequentador. É a síntese da convivência de classes, onde surgem as verdades definitivas, que poucos ousam discordar.
No primeiro bairro em que morei no Rio, Copacabana, os bares misturam aposentados, turistas duros, moradores de rua e alguns jovens, todos ao mesmo tempo e sempre ao som de uma trilha saudosista imaginária para reforçar nossa herança lusitana. Essa saudade embaça a decadência e impede que se reconheça a atual desimportância da outrora Princesinha do Mar. Por isso, ou por tudo isso, nos bares florescem os sentimentos de revolta e de impotência. Terreno fértil para a pregação de soluções rápidas, de força e populistas.

Na vizinha Ipanema, a história se repete. Os bares são melhores um pouco, mas as saudades das épocas de ouro também estão instaladas no peito dolorido de quase todos. Foi lá que vivi os melhores anos da minha temporada carioca. Nos anos de 2008 a 2014. O Rio recuperou um pouco a qualidade de vida. As famosas UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora, pareciam mágicas. Ninguém imaginava que o sentimento de bem-estar escondia a subtração de muito dinheiro público em tenebrosas transações, como destacou o poeta. As pessoas andavam a noite pela praia até o Leblon. Lotavam os bares, e se discutia muita política. O sucesso das intervenções da PM nas favelas fez surgir um sentimento cada vez mais forte de apoio à mão forte do Estado. Foi aí que ouvi pela primeira vez uma análise sobre o potencial eleitoral do então obscuro deputado Jair Bolsonaro.

Advogado aposentado, boêmio por excelência, testemunha do esplendor e da decadência do Rio de Janeiro, Otávio Corrêa, o Tatá, é personagem da junção de Copacabana, Arpoador e Ipanema. Cadeira cativa no Zig Zag, icônico bar do cearense Nonato, é de lá que ele observa a vida passar e os costumes mudarem. O bar fica na porta de entrada de Ipanema, por isso, mistura também pessoas diversas. Foi de lá que ele me alertou sobre o crescimento do capitão/deputado no eleitorado. Destacava a pregação da segurança e a cultura do extermínio numa cidade magoada, ferida. E advertia para o potencial desse discurso se propagar para o resto do País. Deveria ter ouvido mais o Seu Tatá, como eu o chamo.

Então cheguei à Barra da Tijuca, um lugar mais perto do Rio do que Cabo Frio. Lá os bares se concentram em shoppings e num lugar determinado, como em Brasília. Por Bar, entendam Botequim, com alma, com o dono mal-humorado, garçom metido a engraçado e banheiro fedorento. Na Barra, é muito mais fácil encontrar uma igreja pentecostal que um bom bar. Mas lá proliferam os quiosques na beira da belíssima praia. Em comum com os botecos, o mesmo discurso da segurança, extermínio e os banheiros fedorentos. É com esse caldo que brotam, em parte dos frequentadores, as verdades absolutas: arma protege o cidadão de bem; radares de fiscalização no trânsito são máquinas de arrecadação; esse papo de preservação é coisa de ONG de gringos canalhas; universidade pública é coisa de comunista; a milícia é melhor que o tráfico; militar não rouba; gay tem cura; feminista é vagabunda; e por aí vai.

O capitão frequentava os quiosques da Barra. Foi lá que ele forjou a maneira pela qual tenta governar.

 

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