Estava eu ainda nos bancos escolares quando li uma crônica do célebre Fernando Sabino. Chamava-se “Em Código”. Nela, o escritor nos contava sobre um estranho telefonema recebido de um secretário de seu irmão. O secretário pedia que o escritor providenciasse um papel e uma caneta, para anotar uma série de frases estranhas e sem sentido, todas repassadas pelo irmão do escritor. Seriam elas:
“ Minha mãe precisa de uma nora” ou
” Pobre vive de teimoso” ou
“ Não sou colgate, mas vivo na boca de muita gente” ou
“Poeira é a minha penicilina “ ou ainda
“Carona só de saia”, entre outras.
Fernando teria ficado intrigado e irritado com tal telefonema e com as esdrúxulas mensagens recebidas e anotadas. Posteriormente, contudo, teria compreendido tudo: seriam todas frases escritas por motoristas e pintadas na frente de seus caminhões. As frases teriam sido coletadas pelo irmão do escritor, durante uma viagem, para ajudá-lo na montagem de uma futura nova crônica.
Após reler “Em Código”, fiquei pensando que algo semelhante poderia acontecer comigo lá pelo ano de 2060.
Resolvida a arrumar o escritório, eu poderia encontrar extratos de jornais antigos, amarelados, datados de 2019/2020, com frases soltas, recortadas e guardadas em uma pasta. Meu pai costumava ter esse hábito e eu o segui em sua mania. Intrigada, eu leria, já com certa dificuldade, em razão da idade avançada, as seguintes frases, recolhidas aleatoriamente:
“ O erro da ditadura foi torturar e não matar”
“Eu sou favorável à tortura”
“Eu jamais ia estuprar você porque você não merece”
“Foram quatro homens. A quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher”
“’Prefiro que morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí”
‘O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um couro, ele muda o comportamento dele”
“Eu te amo” ( para Trump)
‘O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas”
“Eu não entraria num avião pilotado por um cotista. E nem aceitaria ser operado por um médico cotista”
“Como eu estava solteiro na época, esse dinheiro do auxílio-moradia eu usava para comer gente”
“Quando (a covid) pega num bundão de vocês a chance de sobreviver é bem menor”
“Não sou coveiro”
“Golden Shower”
“ O que os caras querem é a nossa hemorroida”
“Eu queria dar uma porrada na sua cara”
“ Eu sou Messias, mas não faço milagre”
Estaria eu diante de um código secreto? Por que cargas d’água eu teria guardado tantas frases estapafúrdias e desconectadas por tantos anos ?
Para refrescar minha memória liguei o computador do escritório e digitei, com dificuldade, as frases selecionadas. Qual não foi minha surpresa quando apareceu a imagem de uma só pessoa, a qual teria pronunciado todas aquelas frases. Essa pessoa teria exercido um cargo importante! Seria uma autoridade! Teria sido eleita pelo povo. Por 57,7 milhões de votos. Minha vista deveria estar embaçada. Fui ler de novo. Cinquenta e sete vírgula sete milhões de votos.
A memória foi voltando aos poucos. Entendi a razão das tiras de jornal guardadas. Eu deveria fazer uma crônica no futuro com todo esse rico material.
Mas desisti do intento. Quem, em 2060, iria entender uma história dessas?
* Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada