Sempre me perguntei o que faz do artista um artista. Ou o que faz algo virar obra de arte.
Filósofos, estetas e historiadores de arte já se debruçaram longamente sobre o tema e não chegaram a uma conclusão definitiva. Nem universal. Não serei eu a fazê-lo, obviamente.
Sabe-se, contudo, desde o início do século passado, que a “beleza” não seria o canal, o caminho inequívoco que nos conduziria inexoravelmente à resposta de tal indagação, tantos são os exemplos de obras que admiramos profundamente mas que não podemos dizer que são esteticamente belas.
Os sapatos de Van Gogh, para mim, são um desses exemplos clássicos de feios que são belos.
Quantas vezes já me deparei admirando tal obra e fiquei me perguntando como poderia um artista extrair tanto lirismo de um par de sapatos sujos e desgastados. E elevá-los ao patamar inequívoco de obra de arte.
Quanta vida somos levados a intuir e extrair de tal pintura! Trabalho, pobreza, cansaço e humilhação são algumas das possíveis mensagens que se encontram sub-repticiamente incrustadas – deliberadamente ou não – naquele conjunto de formas e cores.
As pinceladas nervosas, marca registrada do pintor, deixam a revelar, de forma subjacente, inúmeras possibilidades de vida ali encerradas.
É muita vida, muita alma, muita força que explode de uma mera natureza-morta. Muita intensidade embutida numa imagem que não poderia ser considerada intrinsecamente bela mas que exalava beleza, uma outra beleza. Um significado. Ou vários significados. Profundos significados.
Seria, portanto, o seu significado, e não a beleza, que estaria por trás daquela obra de arte. Suas formas e cores, aliadas ao seu significado, expressariam algo que nos tocaria a alma, as emoções e o intelecto. E que nos lembrariam imediatamente que estaríamos diante da obra de um grande artista, de um gênio.
Não seria diferente com Chico Buarque.
Quando pensamos em poesia, intuitivamente algumas palavras nos invadem a mente e nos fazem supor sejam elas adequadas ou compatíveis à formação da escrita poética: amor, beleza, lua, sol, vento, natureza.
Quem ousaria incluir sapatos nesta lista?
Apenas um grande artista seria capaz de colocar também um outro sapato na letra de uma música e não torná-la banal ou cafona.
É o que Chico Buarque faz em “Eu te amo”, composta em 1980 . Além do sapato, o compositor consegue inserir na mesma canção a palavra “paletó” e, não só isso, a expressão “armário embutido” e extrair – ao contrário do que ordinariamente se faria supor – um efeito extraordinariamente lírico.
A genial capacidade de nos surpreender, fazendo-nos virar pelo avesso em relação às nossas convicções sobre o belo, o adequado, o elegante e o esperado de uma composição poética sofisticada.
Em arte, nada é certo, direto ou simples. O caminho que o artista perfaz para expressar uma ideia, uma emoção ou mesmo o indizível é apenas dele. E único. Seja em forma de sapatos ou paletós.
É assim que eles nos enlaçam. Abrem o armário embutido e as nossas mentes para nos permitir vivenciar o que pensávamos ser impossível.
* Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada