O 1º de maio me chega com insônia, pesadelo e uma raiva que persiste ao despertar. No delírio noturno, sou jogado ao passado de repórter pré smartphone, na cobertura de um ministério indeterminado. O grupo de jornalistas recebe duas folhas de documentos sobre um acordo financeiro fresquinho, firmado entre o governo Federal e um Estado. Um grupo de repórteres e uma única cópia. Insistimos em um kit para cada um, para que a divulgação ocorresse em igualdade de condições, mas a assessoria de imprensa recusa-se a gastar dinheiro com cópias. Sob o teto de gastos do burocrata, fomos todos furados pela imprensa do Rio, que recebeu a informação das autoridades locais.
Foi em meio a essa revolta que acordei pensando na morte de Belchior, assunto que levara digerindo para a cama. Com a morte do cantor, voltei aos meus 16 anos, em flashes das sessões musicais que nossa turma de colégio curtia na casa do colega Antônio. Era 1976, e os encontros regados a coca e guaraná. Coca-cola e guaraná. E na vitrola, a voz de Belchior arrancava pedra das tripas e a expelia pela boca. Mal estar psico-sociológico misturado e remendado, mas a ferida reabria com a pedrada a cada volta da agulha da vitrola.
No fundo, é essa pedra que continua por aí, quicando em nossas cabeças e assombrando nosso sono. Quatro décadas depois, ela continua nos lembrando que ainda somos os mesmos e continuamos brigando por uma cópia de xerox ao mesmo tempo para todo mundo; continua nos mostrando que o Paz e Amor das gerações anteriores está sendo vencido pelo ódio, e nos lembrando que “para abraçar seu irmão e beijar sua menina, na rua, é que foi feito seu braço, seu lábio e a sua voz”. É a pedra de sempre, cantada repetidamente pelos poetas de cada época, e coube a Belchior lançá-la no seu turno.
É a pedra do tropeço, não a que o causa, mas a que alerta. Para cada dois passos avançados, um ou dois recuados. Essa é a angústia das gerações, que acreditam que o novo sempre vem, mas sempre têm a sensação de que só suas proles terão o privilégio de vê-lo florescer. “No centro da sala, diante da mesa, no fundo do prato, comida e tristeza, a gente se olha, se toca e se cala, e se desentende no instante em que fala. Medo, medo, medo, medo, medo, medo. Cada um guarda mais o seu segredo, a sua mão fechada, a sua boca aberta, o seu peito deserto, a sua mão parada, lacrada, selada, molhada de medo”.
Mas a vida segue. É hora do almoço.
*José Ramos é jornalista, especialista em comunicação em ambientes sensíveis, com formação em marketing. Foi repórter de economia e política por 18 anos em Brasília; secretário de imprensa da Presidência da República e assessor nos ministérios da Defesa e de Minas e Energia (entre 2005 e 2014); e assessor na UHE Belo Monte. O texto acima é uma colaboração para Os Divergentes.