Augusto Aras, porque já entrado na terceira idade, logo um homem experiente; porque vindo de uma família com história, e uma boa história, democrática, na política baiana, pelo que me foi dado saber; e por pertencer a uma instituição republicana notável, a que cabe garantir a todas e todos os brasileiros o exercício mais pleno de nossos direitos de cidadania individuais e coletivos, sabia muito bem o que estava fazendo quando ofereceu seus serviços a Jair Bolsonaro. Pois a ninguém com a experiência política de Augusto Aras pode ser dado o benefício de jamais ter sabido quem era Bolsonaro: um insubmisso, pra dizer o mínimo, ex oficial do Exército; um parlamentar medíocre; um apologista da ditadura e da tortura; racista; homofóbico; misógino.
Durante sua campanha junto a Bolsonaro para chegar ao comando da Procuradoria Geral da República, pelas mãos, entre outros padrinhos, de outro personagem medíocre da política brasileira, Alberto Fraga, dizia-se que sua principal motivação seria a de confrontar o suposto corporativismo da instituição, que se manifestaria pela prática da lista tríplice, resultante de eleição secreta interna, organizada pela Associação Nacional dos Procuradores da República.
Na lógica de Aras, um Presidente da República não poderia ser tolhido da liberdade de escolher quem bem lhe aprouvesse para o comando do MPF. O que de lógico não tem nada.
Única instituição republicana a merecer o privilégio constitucional da independência funcional, desatrelada dos Três Poderes, o Ministério Público tem todo o direito de blindar a escolha do seu Procurador Geral dos humores únicos de uma pessoa que, no limite, como é o caso agora, poderá ter que criminalmente denunciar. Se uma lista tríplice pode não ser um mecanismo perfeito, nas circunstâncias brasileiras ela é o melhor que se tem, e que deveria, por isso, já ter sido consagrada em lei.
Dizia-se também que Aras oferecera a Bolsonaro sólidas convicções religiosas conservadoras, no caso, Católica Apostólica Romana – o mesmo credo, aparente, do Presidente da República -, e igualmente sólidas convicções econômicas (neo) liberais, essenciais ao projeto econômico (sic) de Paulo Guedes, inclusive no tocante ao desmonte de direitos trabalhistas. O que, por si só, já desqualificaria Augusto Aras para o exercício do cargo que almejava com tanto destemor. Mas, se foi isto mesmo, ou mais, ou menos; se as conversas privadas com Bolsonaro foram somente republicanas – hipótese que, se levada a sério, parece risível -, isto é matéria para historiadores.
O que parece evidente é que Bolsonaro viu em Aras um parça e, ao que parece, o experiente procurador da República nada viu de estranho nisso.
Até que Sérgio Moro abriu para o Procurador Geral da República as portas do inferno, deixando Aras sem alternativa que não a de instaurar inquérito, para investigar possíveis crimes do Presidente da República. E de Moro, também, registre-se.
Imediatamente, adotou-se a premissa de que Augusto Aras, independentemente do que viesse a ser apurado pela Polícia Federal, sob a condução do Ministro Celso de Mello, arquivaria o caso porque seria impossível tipificar crime cometido pelo Presidente da República, já que as evidências colhidas nos diversos depoimentos e, em especial, no vídeo da reunião ministerial de 22/04, não seriam cabais o suficiente para que Bolsonaro fosse denunciado, o que livraria, inclusive, Sérgio Moro.
Ocorre que investigações penais raramente se dão em circunstâncias que apontam para uma prova cabal; a ‘bala de prata’ que o jornalismo gosta de destacar. Tome-se, como exemplo, a investigação penal mais extrema – a de um homicídio, ou feminicídio. Se o autor não for, ou apanhado em flagrante, ou venha a confessar, o Estado terá que provar a autoria com base em investigações que levem a fatos auto-evidentes – como um exame de DNA – ou a evidências que agregadas, por meio de interrogatórios, indícios colhidos ou depoimentos, permitam estabelecer um caso acusatório que seja, para além de qualquer dúvida razoável, suficiente para levar o réu a julgamento.
No caso da porta que o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública escancarou para Aras, as evidências já são mais que suficientes para configurar provas que obriguem o Procurador Geral da República a denunciar o parça Jair Bolsonaro, sem necessidade de qualquer bala de prata.
Augusto Aras tanto já sabe disso, que saiu à caça redobrada de Sérgio Moro, ressuscitando a negociação de delação premiada com Rodrigo Tacla Duran, que acusa de extorsão o advogado curitibano Carlos Zucolatto, sócio de Rosângela Moro, em troca de vantagens no acordo que buscava no âmbito da Operação Lava Jato. Acordo que já havia sido negado pela Força Tarefa de Curitiba.
Ou seja, e finalizando, nessa história de contornos bíblicos, como (quase) tudo o que diz respeito a Jair Bolsonaro, a Augusto Aras parece só restar hoje a esperança de fazer de Sérgio Moro o João Batista, cuja cabeça entregará ao Presidente da República, como compensação por não ter lhe garantido, como prometera um dia, o paraíso da impunidade.
*Professor Emérito
Faculdade de Comunicação
Universidade de Brasília (UnB)