Ata na linguiça, a velha máxima da vovó Verissimo

O adágio da avó de Luis Fernando Verissimo - ata na linguiça - é o eixo condutor para explicar acontecimentos recentes na política, como a rejeição bolsonariana à vacina chinesa e o boi bombeiro

Luis Fernando Verissimo, escritor gaúcho e colorado

“Atar na linguiça”, dizia a avó do escritor Luis Fernando Verissimo para descartar irrelevâncias. Este é um velho adágio gaúcho que se inscreve no rol das lendas absurdas, cuja expressão era a frase “isto é do tempo em que se atava cachorro com linguiça”. O saboroso embutido pode voltar às falas para responder às caras de espanto com que se expressam as figuras da mídia para narrar o que acontece dia sim dia não nos palácios Planalto, Alvorada e arredores. Com isto, bravos repórteres, analistas e comentaristas enchem o tempo e o espaço, na falta de outras caras.

Com políticos, autoridades e sumidades recolhidos em quarentena, nada mais sobra aos veículos do que explorar as caras e bocas de seus profissionais para preencher vídeos e páginas, a falta de personalidades relevantes. Chegou a tal ponto o desespero dos editores-chefes, que uma emissora botou suas repórteres a cantar no ar. Nada contra, mas deveriam, pelo menos, levar um violão para ajudar às pobres divas. Como dizia o ex-presidente Salvador Allende, do Chile, contumaz canário de chuveiro: “cantar com la guitarra é otra cosa”.

Vacina chinesa

O general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde – Foto: Orlando Brito

Algumas pérolas para atar na linguiça: a hierarquia militar teria vindo abaixo porque, frente às câmeras, um capitão do Exército constrangeu um general a declarar obediência a seu comandante-em-chefe. Foi o caso do general de divisão Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, declinar uma máxima do jargão militar, sobre quem manda e quem obedece. Nada de mais, os dois, o presidente e o ministro, buscavam apenas remendar uma lambança de parte a parte, bem típico dos dois, quando escorregaram numa casca de banana deixada pelo governador de São Paulo, João Doria. Fake News: Bolsonaro não é capitão, mas generalíssimo (general dos generais), elevado ao posto máximo pelo voto de milhões de concidadãos e não por um ato administrativo que lhe conferira, num passado remoto, a patente de capitão. Declarar-se disciplinado não diminuiu nem humilhou o ministro, como se insiste até hoje. Se fosse civil, o general diria mais: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”. O general desobedeceu, está na UTI. Vai puxar cadeia? A emenda ficou pior que o soneto. Ata na linguiça.

Pantanal

Que nem os incêndios do Pantanal Mato-grossense. Repercutir o manifesto dos artistas do eixo Rio/SP com os astros locais foi um balde de água fria na fervura. Região rica de expressões culturais (há pouco faleceram duas estrelas, o poeta Manuel de Barros e o maestro Zé Gomes), o manifesto dos artistas do litoral parece ter caído no vazio. Tendo como seus habitantes figuras como Almir Sater, Sérgio Reis, Paulo Simões, João Ormond, a família Espínola (Tetê, Alzira e seus irmãos) e muitos outros, não fizeram coro trágico aos colegas de Ipanema e Vila Madalena. Convidado pela Câmara dos Deputados para depor, Almir contou que na sua região os fazendeiros são organizados para se prevenir, todo ano se articulam para impedir a disseminação dos incêndios, acorrem para apagar fogo quando surge algum foco. E assim estão fora desse problema.

“Foi lá para os lados do Rio Paraguai”, disse o artista, acrescentando que 2020 foi ano atípico, muito seco, muito calor, propício ao fogo. E agradeceu aos bombeiros do Piauí que foram a MS ajudar a apagar o fogo, “ato heroico, pois a palha queimando é tão quente que não dá para chegar perto, diz, e a água lançada pelos aviões agrícolas nem mesmo chega nas labaredas, pois com o calor infernal o líquido se evapora antes de chegar ao chão e volta como brisa para o alto de onde caiu. Entretanto, o que fica é a imagem do “onço” com as patas queimadas do Jornal Nacional. Pois a numerosa fauna silvestre já tinha se tinha se pirulitado quando a savana pegou fogo. A onça do pantanal já nasce sabendo.

Boi bombeiro

Ministra Teresa Cristina, da Agricultura – Foto: Orlando Brito

Seria o caso do “boi bombeiro”. Metáfora infeliz, por mal colocada, da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, diante de uma plateia de leigos. Foi o que bastou e o boi bombeiro virou uma gozação nacional. Azar da ministra que não sabe onde e para quem dizer certas coisas. Entretanto, isto também é fake, pois, como bem sabe o caipira, os campos povoados não pegam fogo, como disse Almir Sater na sua fala aos deputados. Assim está na região do Pantanal onde o cantor tem sua fazenda.

Com boi e vaca no pasto, o incêndio é incidental e pode ser rapidamente debelado. Não que gado apague fogo: o bovino chega na roça (também o equino, asinino e ovino, mas com menor impacto), limpa e, com seu peso e o casco duro, vai pisoteando as ervas. Ao comer selecionando as gramíneas e leguminosas, ativa o crescimento dessas e vai eliminando as demais, tidas como daninhas. Urinando e defecando, molha e fertiliza o solo. A grama verde e rala, crescendo incessantemente, evita perigo do fogo alto e destruidor. Portanto, não é boi bombeiro, mas o que os agrônomos chamam de manejo. Zootecnia. Isto é uma realidade sul-americana. Os pampas da Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul também eram, nos tempos pré-colombianos, campos cobertos por chirca e barba de bode. Foi o pastoreio do gado que produziu as planícies verdes de hoje em dia, cobertas por capim de forquilha e o trevo. As melhores pastagens nativas do mundo.

Cortina de fumaça

UBS, do SUS – Foto: Gabriel Jabur/Agência Brasília

E assim, outras pseudonotícias que assolam o noticiário inflamam os jornalistas, mantêm o público à beira de um ataque de nervos, e, depois, morrem, sem explicações ou consequências. Como a falsa privatização do SUS, ideia absurda segundo o ministro Paulo Guedes, mas que teria saído de seu gabinete, vazada por sua assessora Marta Seiller.

Sem piada de mau gosto, a fumaça das queimadas parece tecer uma cortina de fumaça para ir encobrindo a falta de assunto para segurar o protagonismo do governo até as eleições municipais. Só depois dos resultados do primeiro turno o presidente Jair Bolsonaro vai definir como apoiará seus aliados no segundo turno. Apenas uma certeza: tudo o que for contra João Doria será realizado. Será divertido ver como se portará o capitão caso o adversário de Bruno Covas, no segundo turno, seja Guilherme Boulos. Só resta praguejar como a vovó Veríssimo: “ata na linguiça”.

Deixe seu comentário