Refletindo sobre os primeiros dias do terceiro mandato do presidente Lula, lembrei-me do livro Sarney – O outro lado da história, organizado e coordenado pelo escritor Oliveira Bastos (Ed. Nova Fronteira, RJ, 2001). A obra se inicia com o capítulo Pautas Perdidas, ao qual se segue a entrevista Desafios do Poder, concedida pelo presidente Sarney a Benedito Buzar.
À pergunta, “O que é a Presidência?”, respondeu o estadista da transição: “É um lugar perigoso. Governar importa grandes riscos. Na Presidência, não se administram obras; formulam-se políticas públicas. É um cargo que tem o poder de expulsar quem não tem estrutura para exercê-lo. Estrutura não como sinônimo de conhecimento, mas como capacidade para nele permanecer. Reclama um lastro de experiência, comando, paciência, coragem para decidir e para não decidir e, ainda, noção de tempo. Conjugam-se virtudes e defeitos, opostos e em alternância, sem falar na necessidade de ter saúde. O cargo expele de várias formas: pela renúncia, pela falência física, pela deposição, pelo impeachment, pelo suicídio. A História do Brasil é bem sortida de exemplos. Dom Pedro I, com a abdicação; Deodoro e Jânio, com a renúncia; Whashingon Luís, Café Filho e João Goulart, com a deposição; Getúlio com o suicídio, Costa e Silva, com o derrame; Collor com o impeachment. A responsabilidade perante a história é intransferível. É a velha constatação de que fracasso não se divide.”
O contraste entre o governo do presidente Sarney, iniciado com a internação do presidente Tancredo Neves no Hospital de Base, vítima da doença que o levaria à morte, os dois mandatos do presidente Lula e o início do terceiro, é de causar espanto e fazer refletir. “Cinco presidentes, no Brasil, assumiram marcados para não terminar seus mandatos: Bernardes, Café, Juscelino, Jango e eu”, disse Sarney.
Poucos presidentes enfrentaram anos terríveis como José Sarney. Desde os primeiros dias, quando a cirurgia de presidente Tancredo gerava ambiente de temor, expectativa e incerteza, o Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) manobrou descaradamente para exigir que se desse posse ao deputado Ulysses Guimarães. Na entrevista ao jornalista Benedito Buzar, Sarney admite: “Várias reuniões e articulações foram feitas para evitar minha posse. Assumi, porque o preço do meu afastamento poderia ter um custo imprevisível. O poder podia voltar aos militares” (pág. 25).
Não bastasse, na periferia do governo remanesciam integrantes do Regime Autoritário. Eu os conheci nos primeiros dias de Ministério, quando fui pressionado e me recusei a intervir no Sindicato dos Motoristas, tomado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), para deflagrar greve, tumultuar o trânsito, depredar ônibus, agredir motoristas e passageiros. Em greve, de evidente caráter político, também se encontrava o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, cujo irresponsável presidente, Jair Meneguelli, alter ego de Lula, em fevereiro de 1985 havia declarado guerra à Tancredo e a Sarney.
De nada adiantaram atos de boa vontade do novo governo. Poucos dias após a posse foram anistiados dezenas de dirigentes sindicais cassados, entre os quais Lula, e convidadas as lideranças sindicais para reunião na Granja do Torto, com o presidente Sarney e ministros da área econômica, a fim de discutirem assuntos de interesse comum. A CUT boicotou o encontro, da mesma forma que empenhou todos os esforços no sentido de inviabilizar duas tentativas de realização do Pacto Social.
Ao longo do governo Sarney, “garantiu-se toda a liberdade possível ao movimento sindical, com a marca recorde de 12.600 greves sem nenhum conflito policial e sem nenhuma interferência dos órgãos de segurança”, escreveu Oliveira Bastos (pag. 20). A resposta do PT vinha, entretanto, com violência, maldade, furor, aversão ao diálogo, impelido por sede insaciável de tomar o poder.
O depoimento do saudoso ministro do Planejamento, João Sayad, relata a participação que tive na elaboração do Plano Cruzado. Vale a pena transcrevê-lo: “Começa o ano de 1986 e Pérsio Arida tem autorização do presidente para consultar o ministro do Trabalho, Almir Pazzianotto, quanto aos impactos sobre o setor sindical da reforma monetária proposta. Pazzianotto reage à ideia de que indexação generalizada era impossível de ser explicada aos trabalhadores. Pazzianotto tinha razão, pois, dez anos mais tarde, o professor Simonsen, comentando o Plano Real que utilizava a mesma ideia do mesmo autor, ironizou dizendo que URV, o índice usado no processo de indexação generalizada, eram simplesmente as três letras do meio da palavra CURVA. O presidente determinou que o decreto fosse refeito. Ao invés de ser um processo de indexação generalizada, seria um processo de desindexação imediata, o que formalmente é a mesma coisa”. (pág. 159). Consegui incluir no Plano Cruzado o reajuste generalizado pelo INPC, o gatilho salarial e o seguro-desemprego.
José Sarney – estadista à frente da sua época -, governou sem revanchismo, sem ódio, sem caças às bruxas, cujo único objetivo consistiu no trinômio democracia-pacificação-reconstrução. Espero que Lula e o PT, ainda que tardiamente, tenham aprendido a lição.
– Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho. Autor de Mensagem ao Jovem Advogado.