A nota do ministro Augusto Heleno, aquela das consequências imprevisíveis, desencadeou uma outra, de seus colegas de escolas militares, na qual a expressão desfecho imprevisível se faz presente, seguida de outra mais inusitada, hipótese de guerra civil, para resolver a disputa institucional entre o Poder Executivo e o Supremo Tribunal Federal.
A memória me aponta algumas das terríveis guerras civis que ensanguentaram o solo pátrio: durante a Regência tivemos quatro, simultâneas, no Rio Grande do Sul, a Farroupilha; na Bahia, a Sabinada; no Maranhão, a Balaiada e no Pará a Cabanagem, que geraram massacres, ameaçaram a unidade do Brasil e a integridade do território e criaram sequelas indesejáveis na vida nacional.
Depois da República vivemos a Revolta Federalista, com suas degolas de lado a lado, e no ocaso do século XIX a tragédia de Canudos com todos os seus horrores. No início do século XX o País conheceu uma guerra civil entre militares rebeldes e legalistas, o tenentismo, guerreando ao longo de dois anos por todo o território nacional.
Todas estas lutas fratricidas deixaram marcas indesejáveis na alma e no corpo da Pátria. Cogitar reproduzi-las para resolver uma disputa entre poderes e corporações não passa de inconsequência inaceitável e testemunho da imaturidade e alienação daqueles que assim raciocinam.
Os que reclamam do enfraquecimento do Poder Executivo, vis a vis os demais poderes, estão cobertos de razão, mas cometem desatino quando imaginam, em delírio anacrônico, que podem resolver o conflito via a ameaça, como fez o ministro Heleno ou a guerra civil como fazem seus amigos de escola.
Aliás, a agenda motivo de queixas do presidente da República e de seus aliados, e que resultou na fragmentação do Orçamento da União em emendas paroquiais e interesses corporativos, foi um dos instrumentos usados para enfraquecer a presidente Dilma Rousseff e o seu governo, tudo conduzido pelo então presidente da Câmara Eduardo Cunha, com a celebração e os votos dos atuais detentores do poder.
E se a presidente Dilma tivesse dado posse ao seu ministro da Casa Civil à revelia do Supremo Tribunal Federal? E se a mesma presidente mandasse prender na época o juiz de primeiro grau que cometeu crime contra a Lei de Segurança Nacional, ao violar o sigilo telefônico da Presidência da República em matéria que já estava fora de sua alçada? E se o presidente Michel Temer tivesse desconhecido a ordem do Supremo bloqueando a nomeação de sua ministra do Trabalho? Provavelmente, aos olhos dos atuais defensores da separação de poderes, teríamos motivo para uma guerra civil pelas razões contrárias às que enxergam hoje como suficientes para ameaçar o País com os ventos da violência.
Em meio a uma profunda crise social, ao desemprego e ao sofrimento da pandemia, quem levaria a notícia da guerra civil aos milhões de jovens que vivem afundados na pobreza e na desesperança na periferia das grandes cidades brasileiras? Qual seria o papel desses jovens no curso de uma guerra civil?
As guerras civis do passado foram desencadeadas por ódio e violência incontroláveis, mas apresentaram pretextos políticos e plataformas legitimadoras. Haveria uma plataforma para os que cogitam uma guerra civil contemporânea?
Quando norte-americanos e norte-vietnamitas iniciaram as negociações para encerrar a carnificina da Guerra do Vietnã, a esquerda francesa censurou os vietnamitas por aceitar negociar com os agressores. Dizia-se na época que nas mesas dos cafés da Quartier Latin a esquerda francesa defendia que o Vietnã resistisse até o último vietnamita.
É de se perguntar aos corifeus da nova guerra civil brasileira até quantos brasileiros precisariam ser sacrificados para que a Presidência da República tivesse suas prerrogativas respeitadas pelo Poder Judiciário, e se eles também estariam dispostos a oferecer sua cota de sangue para que o nobre objetivo fosse alcançado.
Não. As mazelas e deformidades institucionais do Brasil exigem, é verdade, o confronto, a coragem, a determinação e a clareza nas ideias e na ação política. O resto é bravata inconsequente, que cobre o horizonte com a poeira da desorientação e não da luz que deve iluminar os caminhos do Brasil e do seu povo.
Aldo Rebelo é jornalista, foi presidente da Câmara dos Deputados; ministro da Coordenação Política e Relações Institucionais; do Esporte; da Ciência e Tecnologia e Inovação e da Defesa nos governos Lula e Dilma.