“Existe alguma estrutura de governo – alguma Constituição – por meio da qual um povo seja capaz de governar a si próprio de forma justa e honesta, tratando todos como iguais, exercitando o bom senso e a responsabilidade? Ou seus esforços, não importando suas constituições, estariam fadados a ser corrompidos, seu bom senso anuviado pela demagogia, e sua razão abandonada pela fúria?”
A pergunta feita pela historiadora Jill Lepore, professora da Universidade Harvard, na introdução da sua obra magistral e seminal “Estas Verdades – a História da Formação dos Estados Unidos – Editora Intrínseca”, se nos apresenta como um preâmbulo inescapável a qualquer reflexão sobre o que se passa no mundo contemporâneo, em particular nas Américas e com destaque para os Estados Unidos e o Brasil. As cenas recentes em Washington, com a invasão do Capitólio por uma malta com inominável matiz ideológica sob incomum manto religioso, vão ao encontro da preocupante indagação de Lepore.
No Brasil de Jair Bolsonaro – que tem superado todos os adjetivos degradantes da língua portuguesa – o cenário é mais preocupante do que o dos EUA que, pelo menos nesse primeiro momento, conseguiu conter, institucionalmente, o golpe em curso liderado por Trump. Bolsonaro, que desdenha a pandemia e flerta continuamente com a morte, vem intensificando sua estratégia de armar os cidadãos e de transformar as policias militares em guarda pretoriana dos seus desmandos e pulsão autoritária. Depois de anunciar que pretende facilitar ainda mais a aquisição de armas e munições pela população, quer retirar dos governadores o comando das policias militares – conquista da Constituição de 1988 – trazendo, para a presidência da República o controle dos quarteis estaduais. Para se impor ao Exército, que tem na policia militar uma espécie de força auxiliar, Bolsonaro pretende criar uma nova patente para os oficiais das policias: o general da Policia Militar.
A proposta, que tramita na Câmara dos Deputados, não saiu do Palácio do Planalto – o que não muda exatamente as suas intenções – mas da bancada da bala no Congresso. Governadores e generais da ativa já se pronunciaram contra o projeto. Mas o simples debate desse tema, nesse momento, fortalece e aproxima as policias militares e civis das expectativas políticas e de poder do presidente Bolsonaro. Historicamente, pelo menos desde a Guerra do Paraguai e, sobretudo, desde o golpe republicano de 1889, o Exército, com parceria civil ou não, sempre agitou os quarteis olhando para os Palácios.
Jair Bolsonaro, que foi praticamente expulso do Exército, chegou à presidência da República com o apoio quase explicito das Forças Armadas. Mas as suas bases eleitorais mais consistentes foram as policias civis e militares. Em uma palavra: Bolsonaro antecipa o golpe que articula, com civis armados e policiais militares insurgentes, caso não obtenha a vitória nas urnas em 2022.
No dia 3 de julho de 1922 o então primeiro-tenente aviador Eduardo Gomes, de 25 anos, adentrou o luxuoso Hotel Palace – da família Guinle – e dirigiu-se ao apartamento 313 do terceiro andar. Ali morava o Marechal Hermes da Fonseca com sua encantadora Nair a “convite” da milionária família carioca. Gomes, que se tornaria depois uma legenda das Forças Armadas brasileiras, foi levar ao ex-presidente da República a senha para um golpe militar contra o governo de Epitácio Pessoa e a posse do presidente eleito Arthur Bernardes.
Hermes havia passado a noite anterior detido num quartel por ter-se proclamado “chefe do Exercito Nacional”. Logo mais assistiria, do couraçado Floriano onde se encontrava novamente detido, a prisão do seu filho Euclydes, o fracasso da conspiração e execução dos 18 do Forte de Copacabana. A cena, que completará um século quando Bolsonaro estiver bradando pela sua reeleição em 2022, deverá ter uma nova versão na nova sucessão presidencial. Ontem como hoje, as arruaças de coturnos movimenta-se como uma ameaça à democracia!