Arnaldo Jabor: um Ícaro da liberdade

Jornalista Arnaldo Jabor - Foto Reprodução

Que país é esse no qual a morte de seres humanos gera comportamentos tão díspares. Os brutais assassinatos de dois jovens pobres e negros, anônimos, causaram, nacionalmente, solidariedade e repúdio à covardia. É o caso de Moise (24) e Yago (21).

Olavo de Carvalho

Por outro lado, Olavo de Carvalho ao morrer instigou orgasmos nos seus desafetos, afinal, era um homem da ultradireita e guru do bolsonarismo. Como se a natureza, ao calar um ideólogo ultraconservador, significasse um avanço dos adversários (inimigos) no xadrez da política. Um avesso da interlocução democrática. A ideia de guerra dos bons contra os maus está na base religiosa da cruzada atual, sob as bandeiras regressivas de polarizações falseadas obliteradoras dos reais antagonismos que nos cercam.

A morte natural de Arnaldo Jabor, por sua vez, provoca mais regozijo  que os lamentos de artistas sobre sua inquestionável contribuição à cultura nacional. Um sinal de desmemorialização e desentermediação cultural, algo muito grave. Permaneço com Jabor.

Despiciendo resgatar a genialidade do cineasta, jornalista, cronista, escritor. Romero Venâncio (A morte e a morte de Arnaldo Jabor), um papagaio do crítico Ismail Xavier da USP, estudioso das mutações de Jabor, insiste na cantilena da guinada de Arnaldo para a direita. Chega à seguinte pérola: “deveria ser eleitor de Sergio Moro, se estivesse vivo”. Sem comentários sobre o nível intelectual desse líder sindical.

Jabor foi sempre inclassificável. Rótulos dizem pouco. Afirmou-se como intelectual no sentido mais pleno da organicidade crítica. Crítica irrenunciável, vale dizer, comprometida com a reflexão como causa maior que àquela circunscrita e limitada à uma dada filiação (e culto) ideológica ou partidária. Conhecemos as consequências daqueles homens de crenças últimas e devotos de teorias absolutas que tudo explicam. Eles justificaram várias formas de razão totalitária.

A estética seguida por Arnaldo Jabor em tudo que realizou atendia aos critérios apaixonados da provocação indagativa, socratiana, para sairmos das zonas de conforto, das certezas que congelam o pensamento e nutrem as arcaicas estruturas sociais. Foi um aguerrido combatente da ditadura militar de1964/1988. Criticou o lulopetismo quando o modelo uspiano de intelectual petista se acovardou seguindo Marilena Chauí diante de sucessivos escândalos desde o Mensalão (2005). Desconstruiu o bolsonarismo com todas as suas forças até um mês antes de ser acometido pelo AVC que o vitimou dia 16 de fevereiro de 2022.

Romero Venâncio

De maneira apressada e um tanto estúpida,  Romero Venâncio já mencionado anuncia as duas mortes de Jabor. A primeira teria se dado por duplo comportamento: a adesão ao bolsonarismo e a crítica implacável à propinagem dos governos populares. Jabor teria morrido ao deixar de defender o pressuposto progresso e a abraçar a falácia da corrupção no cenário da política brasileira. Óbvio né?

Quando ao comportamento açodado e energúmeno se acresce a força dos indivíduos de caráter duvidoso temos essa possibilidade de subsumir duas mentiras de maneira a desqualificar a memória e matar um personagem, reduzindo o artista e intelectual a um suicida de seus mais profundos valores. Cancelar é preciso. A palavra de ordem da política-anã.

Jabour nunca foi bolsonarista e sua crítica à esquerda tradicionalista permanece, talvez, como um derradeiro esforço em alertar os setores progressistas sobre a iminência de derrotas ainda mais arrasadoras para as classes trabalhadoras, em particular, e para a democracia em geral. Beócios ainda creem que Lula é socialista, Cuba é uma democracia e que o PT nunca se envolveu em falcatruas. Paciência.

Roberto D’Ávila – Foto Divulgação

Numa entrevista à Roberto D’Ávila no mesmo dia da morte de Arnaldo Jabor Marina Silva colocava a dupla tarefa dos setores progressistas da esquerda: 1ª) autocrítica para não repetir erros…; 2ª) construção prioritária de uma agenda oposicionista na qual compromissos com a forma de desenvolvimento venha antes que a defesa personalista de nomes e  partidos. Jabor seguia próximo essa perspectiva. Sem igrejinhas, remava contra a onda de aloprados.

De alguma maneira Jabor pressentia a burrice de uma disputa calcada em lideranças populistas descoladas da oportunidade de superar más tradições para alçar voos mais altos. O pragmatismo pode ser mais que um bumerangue transformista?

Glauber Rocha, outro iconoclasta, também tinha essa capacidade de desconstruir obviedades do óbvio (Darcy Ribeiro) e antever cenários de maneira a deslocar protagonistas e partícipes de suas imagens de um real estilhaçado, reconfigurando, no trágico, alguma esperança de não repeti-lo, quiçá, melhorando o mundo.

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