Sou obrigada a voltar a escrever. Logo eu, que me aposentei faz tempo. Há muito, nada escrevo. Desde que crescida vi que a vida não é fácil de viver.
Mas, hoje, tenho de ajudar uma amiga: Julieta das Quantas não está bem das bolas, anda bicanca da vida e ao mesmo tempo apaixonada! E quando Julieta se apaixona, nada faz com que ela se esqueça dessa paixão. Noite e dia pensando, noite e dia falando, andando pelo meio da casa… falando sozinha. Parece doida. Julieta está doida mesmo: apaixonou-se a coitada e – imaginem por quem? – apaixonou-se por Ney Matogrosso. E fica ouvindo, sem parar, seus discos antigos. (Julieta é velha e só conhece long-play. Eu é que sei o que é o streaming… tão mais fácil de usar, sem toda aquela trabalheira de pega o disco, tira da capa, vê se a agulha está limpinha senão vai estragar seu disco, checa o toca-discos — que ela insiste em chamar de eletrola — ufa!!, só então põe pra tocar.)
Mais engraçado ainda – se é que isso que vou contar pode ser considerado engraçado -, Julieta passou a ficar assim depois desse tal coronavírus, o enigmático Sars/Cov2. Ou de sua peste, a covid-19! Diz ela que não pode se conformar com tanto sofrimento, com tanta família que não pode se despedir de seus parentes queridos quando alguém morre. E está indignada porque quem devia se preocupar acha que esse horror, essa doença maldita é “apenas uma gripezinha”, que ninguém precisa usar máscara… e sai por aí dando maus exemplos sobretudo aos que não têm acesso à ciência ou aos bons cuidados e a um bom hospital. O bom hospital – diz ela -, em certos lugares, é justo o que abriga nos apertos os que são ricos, não essa malta desgraçada, os ferrados de sempre.
Tento distrair Julieta. E já que ela está amando Ney Matogrosso e eu também gosto dele, apesar de ser muito mais nova que ela, resolvi distrair sua puteza contra o tal cara e pus pra tocar a velha canção que uma vez escandalizou o mesmo Brasil, essa Pátria-Amada.
E entrei de sola com o “Homem com ‘H’: “Nunca vi rastro de cobra/Nem couro de lobisomem/Se correr o bicho pega/Se ficar o bicho come/Porque eu sou é home’/Porque eu sou é home’/Menino eu sou é home’/Menino eu sou é home’/E como sou”.
Aí Julieta não deixou mais a eletrola que toca toda sem parar…
É que – justifica ela (e eu escuto) – os que adoecem feio e morrem são frouxos – o irresponsável diz -, não são atletas e se forem jornalistas, pior ainda. E leu Julieta, abrindo o jornal: “Mas quando pega num bundão de vocês (da imprensa) a chance de sobreviver é bem menor. Só sabe fazer maldade, usar a caneta com maldade, em grande parte. Tem exceções, né, como aqui o Alexandre Garcia”.
Tentei ainda distraí-la, mas a danada pôs outra música cantada pelo Ney pra tocar: “Trem sujo da Leopoldina/Correndo, correndo, parece dizer/Tem gente com fome/ tem gente com fome/Tem gente com fome,/ tem gente com fome/Tem gente com fome, /tem gente com fome/Tem gente com fome/Estação de Caxias/De novo a correr…”
Perdi a paciência com a Julieta, mas não por ela, não com ela mesma, mas com o que ela pensa que é a solução para o problema da pandemia e do pandemônio social, econômico e político que estamos vivendo: “auxílio emergencial”. Tinha que ter algo como renda universal, tento explicar. Mas Julieta não ouve.
Taquei logo Ney cantando ”Comportamento Geral”, de Gonzaguinha, saudoso Gonzaguinha. Danei, então, a pôr o próprio Gonzaguinha pra tocar, e encerrei o papo: “Um homem se humilha/Se castram seus sonhos/Seu sonho é sua vida/E vida é trabalho/E sem o seu trabalho/O homem não tem honra/E sem a sua honra/Se morre, se mata…
“Não dá pra ser feliz,/Não dá pra ser feliz”.
Não pudemos nos abraçar por conta da pandemia. Mas, pelo menos, deu pra gente ser um pouco mais feliz, ouvindo Ney Matogrosso e Gonzaguinha.