No meio desta pandemia, tem muita gente só vivendo no futuro, enlouquecidas para voltar ao “normal”. Afirmo – podendo provar – que não só o “novo normal”, que é o futuro, já chegou de várias maneiras (basta ter olhos abertos, bem abertos para ver), assim como já houve quem, no passado, provou um “novo normal” – e vive hoje feliz com ele.
Simone mudou-se para os Estados Unidos em 2005, levando pela mão os dois filhos, João Victor, que tinha à época 9 anos de idade, e Pedro, de apenas 7. Fazia dó ver a carinha dos meninos se despedindo de todos da janela do ônibus em que saiam do hotel em São Paulo para o aeroporto, onde um avião os esperava. A mãe parecia muito senhora de si, mas por detrás daquela máscara havia determinação, sim, mas também a dúvida se aquilo ia mesmo dar certo. Para trás deixavam o conhecido, os familiares, os amigos, um mundo inteiro de tanta brincadeira – claro, os meninos –, e ela, sabedora de que não seria fácil viver e trabalhar num ambiente onde nem a língua falada, escrita e lida, eram a mesma coisa. Dizem que um poeta, Fernando Pessoa, já havia declarado que “minha pátria é minha língua” – coisa sabida e sofrida por quem tem de se refugiar, por algum motivo, noutro país.
Pense agora naquelas multidões fugindo da miséria na África, dentro de botes minúsculos que demandam a costa da Itália, onde apenas passam, buscando a Alemanha hoje em dia, e os que, durante a II Grande Guerra, deixaram a Alemanha e fugiram do nazismo para qualquer outra parte onde não fossem dizimados: eles, os judeus, os ciganos, os homossexuais, os de esquerda (ao contrário do que certos ignorantes de hoje acreditam, pois se acham certos de que o nazismo era de esquerda…).
A meu lado, aqui na mesa, enquanto digito este artigo (!), leio o título do interessante livro de Daniella Zupo, jornalista e apresentadora de TV que teve câncer de mama (como eu), só que ela em 2016 (eu, em 1995), e publicou seu diário enquanto se tratava: “Amanhã hoje é ontem”. A cabeça da gente fica até zonza…
Mas voltemos a Simone, João Vitor e Pedro. Os três tiveram de mergulhar numa rotina nada igual à do Brasil. Dou a ela a palavra:
“Nós vivemos por anos separados dos nossos familiares, morando em outro país, sem a possibilidade de falar (com eles) todo dia. Usávamos carta e telefone (mínimo porque era caro demais) e aprendíamos a viver e conviver com os que estavam a nosso redor. Agora, o povo surta quando tem tecnologia que nos permite falar, quase de graça, a qualquer momento. Acho – continua ela – isso fascinante. Passamos a fazer coisas que eram proibidas, frente às quais treinávamos nossos filhos para que não as fizessem:
– receber comida de estranhos (comprar comida pela internet ou telefone e ter o delivery);
– entrar em carros de estranhos (Uber);
– ficar na casa de estranhos (Airbnb);
– falar com estranhos (social media).
E a lista vai… tudo por causa da nova tecnologia.
Aí reclamamos quando temos de usar essa mesma tecnologia, que nos separou antes para nos aproximarmos neste momento de pandemia. Somos criaturas estranhas. E isso vai continuar. Vem aí: carro sem motorista, escola virtual, médico virtual…
Mas, agora, vou fazer o pé, porque ainda não criaram manicure virtual. Risos e beijo.”
Volto eu para dizer: o futuro já vem vindo devagar. Quem pensaria que 80 multimegamilionários iriam pedir que os governos de seus países os taxassem para que, com o dinheiro arrecadado, se possa combater o coronavírus de hoje? Quem diria que, no Brasil, os maiores bancos privados – Santander, Bradesco, Itaú – iriam pedir agora ao governo para coibir as queimadas na Amazônia? Ou, em Belo Horizonte – onde moro –, que três diferentes restaurantes (mesmo que sejam do mesmo proprietário, não sei dizer), se juntassem em um mesmo local para entregar comida por delivery em vez de concorrerem uns com os outros e cada um cobrar sua taxa de entrega em distintos lugares?
O “novo normal” já começou. Basta parar de olhar para trás e começar a pensar e a querer a nova vida que já está acontecendo para nós, ainda que misturada com tanta coisa ruim do passado!!!
* Sandra Starling é advogada e mestre em Ciência Política pelo DCP da FAFICH (UFMG), com a dissertação “Governo Geisel: as Salvaguardas Visíveis e Invisíveis do Projeto de Distensão (1974-1979)”