Apesar do título, não falarei aqui do filme de Petra Costa, ainda que minhas palavras possam servir de reflexão para quem goste de caudilhos de todos os matizes. Tratarei, sim, da vertigem da democracia em um país muito em particular: a Alemanha.
Tenho, neste espaço, insistido na tese de que não cabe separar “o joio do trigo” quando se trata de afirmar − como insistem os arautos da imprensa tradicional em nosso país − a possibilidade de separação, num mesmo governo, de um programa liberal, no plano da economia, de uma plataforma autoritária na esfera da política. A fusão de ambos foi a receita do fascismo austríaco, que se fez dominante em Viena nos anos 30 do século passado, até que a Áustria viesse a ser anexada à Germânia nazista, em 1938.
Essa mesma cartilha, com as necessárias adaptações de ocasião, vem se propagando, com sucesso, hoje em dia, tanto na Áustria como na Alemanha. Não nos iludamos: os que nos governam sabem disso. Não são ignorantes. Como cantava Elis Regina, “as aparências enganam aos que odeiam e aos que amam”.
O primeiro balão de ensaio desse “novo estilo”, slogan adotado pelo jovem político Sebastian Kurz, ocorreu no governo austríaco por ele liderado, entre 2017 e 2019, formado por sua agremiação, de centro-direita, e outro partido político, considerado a extrema-direita do espectro partidário da Áustria, o FPÖ (Partido da Liberdade da Áustria). Um escândalo de corrupção, envolvendo o líder da direita radical que compunha a coalizão, levou à derrubada desse governo e à realização de novas eleições, em setembro de 2019.
O Partido Popular Austríaco, de Kurz, saiu ainda mais fortalecido, mas precisou moderar um pouco sua retórica populista para conseguir formar uma nova maioria parlamentar, com os ecologistas no lugar dos extremistas. De toda maneira, a recusa da intervenção estatal no domínio econômico e o nacionalismo exacerbado continuam sendo o cerne de sua ação governamental. Vamos ver aonde isso vai chegar. A conferir.
O mesmo ideário, como ia dizendo, vai se espalhando também pela Alemanha. O alarme soou na quarta-feira, dia 5 de fevereiro de 2020. Um terremoto! Na semana anterior, em Berlim, haviam sido comemorados, intensamente, os 75 anos de liberação do campo de extermínio Auschwitz-Birkenhau.
O Presidente do Estado de Israel, Reuven Rivlin, orador oficial da cerimônia no Bundestag (Parlamento), pediu que os alemães lutassem com todas suas forças contra o antissemitismo, o racismo e a xenofobia. Em Jerusalém, poucos dias antes, o presidente alemão, Franz-Walter Steinmeier, recordava que “o nacional-socialismo não caiu do céu”. Palavras ao vento?
Políticos da Turíngia parecem ter desdenhado o apelo da autoridade israelense e a advertência do chefe de Estado alemão. Esse ente federado − que fazia parte da extinta República Democrática Alemã − é pouco conhecido entre nós. Mas, cultural e historicamente, é muito importante.
Lá se refugiou Martinho Lutero de seus perseguidores, aproveitando a reclusão em um mosteiro para traduzir o Novo Testamento do latim para o alemão (obra considerada por muitos estudiosos como o primeiro livro nessa língua); lá nasceu o titã da música barroca, Johann Sebastian Bach; lá viveram dois gigantes da literatura romântica alemã: Goethe e Schiller. Ali foi escrito o famoso Programa de Gotha, objeto de contundente crítica de Marx; ali Gropius revolucionou a arquitetura e o design, criando a Escola Bauhaus. Na Turíngia, a Alemanha experimentou, pela primeira vez, a forma de governo republicana e o regime democrático-liberal, quando acolheu, em Weimar, no ano de 1919, a Assembleia Nacional Constituinte.
Até as últimas eleições, realizadas em outubro do ano passado, a Turíngia era governada por uma coalizão formada pela Esquerda (socialistas radicais), pelo SPD (socialdemocratas) e pelos Verdes. Os esquerdistas continuam sendo a maior força política – quase um terço do eleitorado −, mas não conseguiram formar um governo de maioria parlamentar.
Na última quarta-feira, a democracia-cristã (CDU), de Angela Merkel, e o FDP (liberais) – que ultrapassou a cláusula de barreira raspando na trave − se uniram para tentar formar um novo governo, chefiado pelo FDP. E conseguiram. Para tanto, convidaram a participar do consórcio a Alternativa para a Alemanha (AfD), que vem a ser a extrema-direita alemã.
É a primeira vez, desde a fundação da República Federal da Alemanha, em 1949, que extremistas de direita se habilitam a fazer parte de um governo. A AfD é o partido-irmão da agremiação Partido da Liberdade da Áustria, os radicais ultradireitistas da vizinhança. Para se ter uma ideia do que se passa nas mentes e corações dos militantes da AfD, o seu líder na Turíngia, Björn Höcke, considera uma “maluquice” os alemães terem erigido, bem ao lado do Portão de Brandemburgo, em Berlim, um monumento às vítimas do Holocausto.
Os liberais alemães repudiam a intervenção estatal na economia e advogam plena liberdade individual. Já tiveram até um líder assumidamente homossexual. A democracia-cristã, por obra de Ludwig Erhard, um articulado economista que se tornou primeiro-ministro, criou a chamada “economia social de mercado”, bandeira que lhe permitiu disputar a hegemonia com os socialdemocratas, desde o fim do regime nazista.
São ideias e posturas que, na última quarta-feira, foram para o liquidificador juntamente com a pimenta jalapenho da ala mais racista e xenófoba da Alternativa para a Alemanha. A gritaria foi tamanha, a começar pela própria Angela Merkel, que a brincadeira parece só ter durado 24 horas. Pelo menos por enquanto. No dia seguinte, o governador eleito, o liberal Thomas Kemmerich, anunciou sua renúncia e a convocação de novas eleições.
Enquanto isso, o antigo governador, Bodo Ramelow, da Esquerda, derrotado por essa tramoia, tuitava as palavras ditas por Adolf Hitler, em 2 de fevereiro de 1930, três anos antes de assumir a chefia de um governo em que os nazistas seriam, inicialmente, minoria: “Obtivemos nosso maior sucesso na Turíngia. Lá somos hoje, realmente, o partido decisivo. Os partidos na Turíngia que, até então, formavam o governo, não conseguem formar uma maioria sem a nossa participação”.
Que não passe despercebido! Na Turíngia os nazistas ergueram, em uma colina próxima de Weimar, o campo de Buchenwald, destinado precipuamente ao confinamento e extermínio dos que primeiro se opuseram ao regime hitlerista de terror: os comunistas e os socialdemocratas.
Thales Chagas M. Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG