Pergunto: quando, em 2015, ocorreu a chacina na redação do semanário francês Charlie Hebdo, não houve uma comoção geral e não nos tornamos todos solidários com as vítimas? Não proclamávamos, em alto e bom som, a defesa irrestrita da liberdade de expressão? Não difundimos, à época, cartazes e camisetas, dizendo que éramos todos Charlie Hebdo?
Por que, então, haveria de ser diferente, agora, frente a ato similar de terrorismo que se praticou contra as instalações do “Porta dos Fundos”? Haveria distinção de tratamento pelo fato de, naquela ocasião, ter sido satirizada a religião islâmica e agora recair a gozação sobre a fé cristã? Não, não há.
Pessoalmente, não vejo graça alguma, hoje, em fazer de orientações sexuais ou crenças religiosas material de sketches humorísticos. Menos ainda quando se lança mão da combinação de ambas. Confesso que já houve um tempo em que eu dava estrondosas gargalhadas com umas e outras piruetas do “Seu Peru”, na Escolinha do Professor Raimundo, ou do pai-de-santo Painho. Esse tempo, para mim, passou.
Em dissonância dos discursos libertários, à época do assassinato de doze pessoas, entre jornalistas do Charlie Hebdo e policiais que foram em socorro das vítimas, o Papa Francisco manifestou seu repúdio ao ato terrorista e sua profunda consternação pela perda de vidas inocentes, mas, na sequência, pediu moderação aos humoristas; solicitou-lhes consideração e respeito pela fé das pessoas, independentemente da religião que viessem a professar.
Só quem sente na própria pele a dor infligida pelo escárnio alheio pode quantificar o tamanho da injúria. Mágoa, humilhação e desejo de vingança misturam-se. Humoristas deveriam pensar nisso, antes de enxovalharem sentimentos profundamente arraigados.
O diretor Daniel Filho, em documentário recentemente exibido na Globo News sobre o humor em tempos sombrios, diz que o humorista consegue identificar os seus limites ao perceber a reação de reprovação do público à sua provocação. Sabe, assim, que, às vezes, fazendo uso de expressão do jornalista Marcelo Tas, no mesmo documentário, “errou na mão”.
Acho que o pessoal do “Porta dos Fundos” errou na mão. Mas, com todas minhas ressalvas ao especial do “Porta dos Fundos”, que tanta celeuma provocou, ainda digo, sem receio algum: Je suis “Porta dos Fundos”!
Artur Xexéo, em sua coluna publicada no Segundo Caderno de O Globo, na edição de 12 de janeiro próximo passado, lembra que “soam estranhas no texto de um grupo saudado como a renovação do humor no Brasil as piadas de duplo sentido que faziam sucesso nas revistas da Praça Tiradentes na metade do século passado”. Mas a liberdade de expressão existe ou não existe. Está garantida constitucionalmente ou não está. Não há meio termo.
Como Xexéo, entendo que “todo mundo tem o direito de se ofender com o que quer que seja. Todo mundo tem o direito de boicotar qualquer expressão artística. É assim mesmo que funciona a democracia. Mas democracia com censura não existe”. Menos ainda com explosão de bombas e atos de vandalismo levados a efeito por fanáticos, acrescento eu.
Aquela admoestação papal a que me referi anteriormente restringia-se ao plano da moral. Para trás ficaram os rituais da poderosa Santa Inquisição, em que as “heresias” eram purgadas na fogueira.
Podemos dizer, talvez com mais propriedade, que dito apelo eclesiástico – legítimo, insisto – se limitava à esfera da ética. Vivemos numa era em que alguns − como o líder da Igreja Católica, mas, de toda maneira, lamentavelmente, uma minoria – ainda buscam um modus vivendi de tolerância e respeito entre diferentes, para que não nos danemos todos. Gandhi dizia, com razão, que, se seguíssemos observando a lei de Talião, acabaríamos todos cegos e desdentados.
Temos de buscar, rapidamente, meios de integração entre fé e saber; entre razão e religião; entre crença e ciência. Urge retomar os esforços de Tomás de Aquino. Um bom exemplo disso são os diálogos entre Marcelo Gleiser e Frei Betto.
Em uma conversa com o ainda cardeal Joseph Ratzinger, poderoso prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (o velho Santo Ofício), em janeiro de 2004, na Academia Católica de Munique, Jürgen Habermas – quem diria! − declarou: “Os cidadãos secularizados, na medida em que agem em seu papel de cidadãos, não podem negar em princípio um potencial de verdade à visão do mundo religioso, nem contestar a seus concidadãos crentes o direito de oferecer sua contribuição ao debate público com uma linguagem religiosa. Uma cultura política liberal também pode esperar que os cidadãos secularizados participem dos esforços para traduzir as contribuições relevantes do campo religioso em uma linguagem acessível ao público”.
Habermas parece ter levado à frente essa tarefa. Aos noventa anos, acaba de publicar um livro de 1700 páginas, no qual procura tratar do progresso humano à luz do que ele chama de “constelação da fé e do saber”.
Eis aí um desafio para todos nós. Inclusive para os humoristas, a fim de que estes não precisem, na busca de reconhecimento e prestígio, recorrer “às piadas de duplo sentido que faziam sucesso nas revistas da Praça Tiradentes na metade do século passado”.
* Thales Chagas M. Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG