Algumas pessoas manifestam perplexidade com o momento que estamos vivendo. O COVID-19 é uma virose galopante, com uma taxa de mortalidade alta entre pessoas mais idosas ou que apresentem problemas de saúde preexistentes. Os governos foram forçados a impor medidas sanitárias duras e a conviver com uma crise aguda do sistema de saúde. A morte por insuficiência respiratória, agregue-se, é cruel.
Eu estou encarando essa situação de modo espartano, porque já a vivi no passado. Em 1969, morava na Itália quando se espalhou uma virose que ficou conhecida mais adiante como a Gripe de Hong-Kong. O roteiro, pelo que lembro, foi parecido. A gripe surgiu na China, chegou a Hong-Kong, dali ao Oriente Médio e, na América, à Califórnia. Finalmente, em meados de 1969, chegou à Europa, pegando-nos em pleno inverno lá na Itália.
Ouvi dizer também que foi uma pandemia relativamente benigna. No entanto, lembro da notícia da morte do matemático e filósofo Sir Bertrand Russell, vitimado pela doença. Era um velhinho culto e aguerrido, pacifista, que volta e meia aparecia na televisão. Anos depois, eu iria ler e usar sua História da Filosofia Ocidental, um bom compêndio, didático e de leitura agradável. As pessoas ficam pelo que elas escrevem.
Nas primeiras semanas de gripe, meus irmãos e eu caímos logo doentes. Febre altíssima. Lembro das imagens distorcidas do quarto, que se aparecia ora gigantesco, ora comprimido ao meu olhar. As noites mal dormidas, com a indisposição e a dor no corpo dificultando uma posição na cama. Meus pais se desdobravam em atender, também doentes, às cinco crianças que reclamavam, tossiam e gastavam caixas e mais caixas de Kleenex. Certa noite, exaustos e desanimados, abriram uma garrafa de chianti comprado na padaria da esquina para aguentar um pouco mais a dor física e nos colocar para dormir.
Após duas semanas de reclusão, tendo superado os sintomas, pude voltar aos poucos à vida normal. Primeiro, sair agasalhado à varanda, para olhar as ruas vazias do bairro, tomar um ar frio de inverno, colocar em dia algum dever que o colégio tivesse avisado por telefone que deveria ser feito. Após três semanas, de volta às aulas, para encontrar minha turma reduzida a cinco ou seis companheiros que já se haviam recuperado. Fui ao colégio para ficar praticamente só durante meio mês.
E foi assim. A cidade estava vazia, o colégio estava vazio, o comércio às moscas. Não por ordem do governo, mas por falta de gente. A pandemia havia pegado a todos. Era a solidão da virose.
A gripe representou minha independência. Não havia condução à escola, pois o motorista caíra doente. Assim, aos doze anos, passei a andar de ônibus de linha e aprendi a caminhar à vontade pelas ruas de Roma. Nos meses seguintes, me acostumei a percorrer e explorar vielas e esquinas da cidade, aprendendo sua geografia e sua história. Na primavera, Roma já se enchera de vida novamente e voltara a ser encantadora e, naquela época, relativamente segura para uma criança.
Juntando umas mesadas, comprei minha primeira câmera, uma Agfa Iso-Pak, bem simplesinha. Dali em diante, meu olhar sobre o mundo passou a ser o olhar pelo visor de uma máquina fotográfica.