Poucas imagens chamaram-me mais atenção no decorrer desses últimos anos do que aquela de uma criatura de cabelos desalinhados e de rosto desfigurado segurando a bandeira nacional e fazendo rodopios desvairados com o símbolo de nossa nação em suas mãos.
Tão estupefata fiquei, à época, que achei que não iria ter oportunidade de presenciar algo tão grotesco e caricato novamente.
Enganei-me completamente.
Descobri, a posteriori, que aquilo seria apenas uma prévia do que estaria por vir. Uma espécie de trailler de um filme longa metragem sem hora e data para terminar.
Mas eis que chega o discurso de posse da ex-Secretária da Cultura e uma nova cena me foi apresentada. Novos olhos revirados foram combinados com gestos teatrais para que a empossada se referisse à cultura brasileira como o “pum do palhaço”.
Estaria eu careta demais ou aquela não seria uma expressão muito apropriada para um discurso de posse? Já assisti a inúmeros discursos de posse na vida e posso lhes assegurar que jamais vi algo minimamente parecido.
Deve ser a modernidade, pensei eu.
Os memes que se seguiram na imprensa e nas redes sociais acalmaram-me. Aquilo havia sido realmente “over”.
Meu pai, já falecido, adorava ir ao circo e o palhaço era o seu personagem preferido. Homem tão contido que era, mas que, à frente do número dos palhaços circenses, tornava-se criança novamente, e ria tão alto que os outros espectadores começavam a rir também, mais dele do que do próprio espetáculo, creio eu.
Digo isso exatamente por ter uma memória afetiva muito grande com os palhaços, esse personagem tão doce, melancólico e poético dos espetáculos circenses que povoaram a infância de muitos de nós.
Daí à menção ao discurso da empossada, sobretudo da palavra empregada, aquela que antecede o personagem, vai uma grande distância.
Na verdade, acho que nem foi a expressão utilizada que me causou aquele incômodo. Fosse ela expressão de autêntica irreverência, até que seria bem-vinda. Mas, partindo de alguém que se alinha aos projetos mais conservadores e retrógrados do grupo que se encontra no poder, inclusive em relação à educação e à cultura, pareceu-me bizarro.
Meu pai era um visionário, hoje sei.
No tempo em que a ex-Secretária da Cultura era conhecida como “A Namoradinha do Brasil” e eu, assídua espectadora de telenovelas, ele costumava levantar-se do sofá todas as vezes em que ela aparecia nas telas.
Intrigada, eu perguntava: “O que foi, pai”?
E ele me respondia: “Vou me retirar. Não aguento a voz dessa mulher”.
Mal saberia ele que 40 anos depois, a voz que ele tanto odiava, além de protagonizar o espetáculo acima, faria algo pior. Iria cantarolar, em recente entrevista jornalística, uma música que virou símbolo de uma época, traumática para muitos de nós, notadamente porque foi utilizada como propaganda da ditadura militar brasileira.
E cantarolou pedindo alegria, ufanismo, descontração, num momento igualmente dramático para a nossa população. Marcados que estamos pelas incertezas de uma doença terrível que nos abate e que expõe, de forma cruel, as desigualdades sociais de nosso país, aquela melodia nos soou infame, indigna, intolerável.
Meu pai foi poupado. Nós, não.
Dizem que a arte imita a vida. Por aqui, ao contrário, a vida anda imitando a arte.
Formalizada a exoneração da Secretária, descobriu-se que o cargo que lhe fora prometido, na Cinemateca Nacional, nem sequer existia.
Ficará eternizada, também na vida real, como aquela que foi, sem nunca ter sido.
* Eliane de C. Costa Ribeiro é juíza do Trabalho aposentada (Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região)