Alexis de Tocqueville, em sua clássica e famosa obra, “A Democracia Americana”, que já caminha para dois séculos de sua primeira edição (1835), fez a apologia do regime praticado nos Estados Unidos, único no mundo com suas características, até então, e disse de suas grandes e inovadoras virtudes. Tão boas que essas instituições se espalharam no mundo inteiro, inclusive no Brasil, onde a República, sob a inspiração de Rui Barbosa, moldou a Constituição de 1891 com o domínio das ideias civilistas dos direitos individuais e do poder político, síntese de todos os poderes.
Mas Tocqueville fez uma ressalva sobre o modelo americano: o instituto da reeleição. Em duas páginas ele explica que é um erro e por que a condena. O presidente já assume pensando na sua reeleição e faz o diabo para alcançá-la — assim ferindo os ideais democráticos. “Ele não governa pensando no Estado, mas pensando na sua reeleição. Ele se prostra diante da maioria e frequentemente, em vez de resistir a suas paixões, como é seu dever, corteja seu favor atendendo a suas vontades. Quando a eleição se aproxima, as intrigas se intensificam e a agitação aumenta e se espalha.”
Eu, quando passou no Congresso a reeleição no Brasil, era senador e fui contra, preferindo a ideia de estender o mandato de quatro anos para seis, mas não introduzir a reeleição. Mesmo tendo à época uma filha governadora, assumi essa atitude tendo na cabeça o livro de Tocqueville e concordando com ele e com suas ressalvas. Só tenho motivos para não me arrepender de minha posição.
O Brasil está dividido, e a campanha movida pelo ódio deixará uma hipoteca séria que vai marcar os próximos anos: um país dividido entre pobres e ricos, entre regiões e religiões, entre os “de bem” e os “do mal”. A retórica condena uns à perdição e outros à salvação.
Esse problema da divisão do país será uma herança amarga, e o futuro presidente terá como uma das tarefas principais conjurar o possível gérmen da desintegração.
A democracia não se aprofundou depois da redemocratização. Avançou um corporativismo anárquico que foi beneficiando ilhas de interesses, gerando essa divisão que aflora nas eleições. O sistema político terá que ser reformado ou recriado. Não será fácil. Enfrentará resistências de aliados e contrários.
Avanço algumas ideias: acabar com o voto uninominal, que não permite partidos fortes ou a formação de lideranças. Graças a ele o Parlamento desmoralizou-se, instituiu práticas condenáveis e perdeu legitimidade. Implantar o voto distrital misto, com distrito e lista partidária. Barrar esse arquipélago de partidos, que não possuem democracia interna, são cartórios de registros de candidatos, só servem para negociações materiais.
É preciso resolver o grave problema de financiamento de campanhas, pois estabeleceu-se uma promiscuidade entre cargos, empresas e setores da administração que apodreceu o sistema.
Há uma compulsão de expandir poderes em muitos setores, que avançam tornando o país ingovernável. É preciso acabar com as medidas provisórias, que deformam o regime democrático. Isso no meio de tarefas urgentes, urgentíssimas: recuperar a educação, a pesquisa e a cultura; a saúde e o SUS; o meio ambiente; a política externa; a economia.
Essas tarefas de governo são o transitório, mas o institucional é o definitivo. Julgava que o Brasil tivesse atravessado esse gargalo. Depois do caos da política brasileira tenho receio de que tenhamos um grande impasse pela frente.
É assim, aos trancos e barrancos, que caminha a democracia, que já foi, no sonho de Péricles e de Jefferson, o caminho para a cidadania e a busca da felicidade.
— José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado, escritor da Academia Brasileia de Letras