Tragédia do mundo contemporâneo é a fome. No Brasil, segundo dados conservadores, mais de 33,1 milhões de pessoas passam fome diariamente. Levantam-se pela manhã sem pão com leite e café e, à noite, vão para a cama sem comer. Mais de 40 milhões não comem a quantidade mínima diária, necessária à alimentação adequada. Relatório conjunto da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (FIDA), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PMA) e Organização Mundial da Saúde (OMS) avalia que cerca de 10% da população mundial, algo em torno de 811 milhões de pessoas, enfrentam o problema da fome.
No Brasil, crianças, adolescentes, homens e mulheres adultos e idosos, brancos, mulatos ou negros, experimentam sem cessar a sensação angustiante provocada pela necessidade de encontrar algo para comer. Simples prato de arroz com feijão é algo fora do alcance de considerável parcela da população. Bife, ovos, queijo, alguma verdura, legumes cozidos, carne de porco ou de frango, peixe, frutas, são iguarias desconhecidas para milhões de famílias condenadas a viver na miséria, satisfazendo-se com restos que conseguem encontrar ou que alguma alma generosa ocasionalmente lhes oferece. Milhões de crianças jamais experimentaram o sabor de uma barra de chocolate.
De um ponto de vista social, a fome que assola grande parcela do povo, não resulta apenas da inexistência de alimentos. Faltam-lhes moradias decentes, assistência médica, odontológica e hospitalar, remédios, roupas para o inverno, segurança contra arbitrariedades administrativas, judiciais e policiais. A merenda escolar, balanceada e de qualidade, é privilégio de raras escolas na periferia. Simples escova de dentes, o creme dental e o sabonete são itens de luxo além do poder aquisitivo de milhões de famílias. A carência de saneamento básico condena incalculável número de pessoas a se servirem de água poluída e a dependerem de fossas para satisfazer elementares necessidades.
Pobreza semelhante vamos encontrar no setor educacional. Muitas escolas não recebem manutenção, uniformes, calçados e material escolar são de péssima qualidade, a alfabetização precária, não existem computadores para crianças e adolescentes serem apresentados ao fantástico mundo da informática.
O Brasil já se envaideceu de ser uma das oitos maiores economias do globais. O setor do agronegócio, produtor de alimentos para o mundo, é incapaz, entretanto, de ver e entender as necessidades das camadas famintas da população. Com imenso rebanho bovino, não há carne a preços acessíveis à grande parte da população.
Dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan – 2022) revelam que o Brasil voltou ao mapa da fome de ONU em 2018 e, em 2020, registrou 55,2% da população convivendo com a insegurança alimentar. Nos últimos tempos, tornou-se rotineiro observar pessoas buscando ossos e carcaças doados ou adquiridos, para cozinhar.
Josué de Castro foi o primeiro cientista brasileiro a tratar metodicamente do assunto. Natural de Recife, onde nasceu em 5/9/1908, diplomou-se em 1929 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Em 1932, foi aprovado em concurso para livre-docente de fisiologia da Faculdade de Medicina de Recife, com a tese O Problema Fisiológico da Alimentação. Ainda em 1932 orientou a realização de pesquisa sobre a qualidade e o padrão de vida do operariado nordestino. Para Josué de Castro a baixa produtividade do trabalhador resultava da doença fome. Escreveu Geografia da Fome e Geopolítica da Fome, livros traduzidos para vários idiomas, que lhe trouxeram prestígio internacional.
Várias vezes indicado para receber o Prêmio Nobel da Paz, pelos trabalhos desenvolvidos em benefício da saúde popular, teve os direitos políticos cassados pelo Ato Institucional nº 1, de 1964, e foi obrigado pelo regime militar a se exilar em Paris, onde faleceu em 24/9/1974.
A PEC 1/2022 é exemplo definitivo da postura populista e demagógica do governo Jair Bolsonaro e dos partidos que dizem lhe fazer oposição. Registra o editorial do jornal O Estado de S. Paulo, na edição de ontem, 2/7: “A votação é o marco histórico de um retrocesso sem precedentes. Em tramitação relâmpago, os senadores autorizaram que a Constituição fosse alterada – sem estudo, sem planejamento, sem debate, ignorando as consequências fiscais, sociais e institucionais – para mudar casuística e arbitrariamente as regras do jogo democrático, de forma a permitir o mais deslavado clientelismo”.
Fosse possível acabar com a fome e o desemprego mediante alteração constitucional ou legal, por prazo marcado e com dinheiro público, países como a Índia, Etiópia, Camboja, Angola, Moçambique, onde a fome grassa com violência, já o teriam feito.
Auxílio temporário para aqueles que dele necessitam é sempre medida bem-vinda. Associada, entretanto, a medidas objetivas correlatas, destinadas a promover o desenvolvimento sustentável e a geração de empregos.
– Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.