A sensação de desordem geral torna-se recorrente neste novo século, gerando reações díspares nos indivíduos e grupos sociais. Na área do Direito não é diferente em nosso país. Há juristas revoltados com tanta anomia jurídica e outros otimistas, afirmando que o sistema judicial funciona, bem ou mal. A percepção da efetividade ou não do Direito depende da área de atuação dos profissionais da Lei, do tipo de seus destinatários e dos interesses em questão, como também da região ou do estado da federação e das formas de interação do poder entre o privado e o público nas quais se dão as disputas. Tudo depende do ângulo analítico, da condição social dos envolvidos com os serviços jurídicos, principalmente.
Neste pequeno artigo a reflexão sobre o Direito não enfrentará as questões acima enunciadas. O objetivo é uma discussão preliminar e urgente sobre a racionalidade jurídica em face de duas historicidades, vale dizer, situada e consequente ao duplo problema do nosso Direito como: a) projeto moderno tardio imbricado com b) diante da atual crise da democracia liberal mundial, sob variados contextos históricos e processos de deslegitimação política. Nestes processos estiveram presentes e convergiram visões de mundo de certa esquerda marxista-leninista dos séculos XIX e XX, segundo a aquela compreensão instrumental da democracia, classista, burguesa, como aquela outra da ultradireita autocrática (crescente desde o final do século passado e início do século XXI), para a qual a democracia, com seu estado de direito, é um óbice aos interesses do povo.
Mas o que é o Direito moderno em suas imbricações com o capitalismo e nas suas possibilidades de com ele compor e registrar conquistas amplas em conjunturas adversas (com o acúmulo e sobreposição de verdadeiras mutações)?
Normas instituem, e para tal devem ser instituídas, pelos costumes ou por força de lei.
As formas jurídicas condensam, não raro assimetricamente, interesses. Vendo desta maneira as normas obedecem ao processo tenso de racionalização no qual configuram-se demandas para apaziguamento, composição ou imposição de dada vontade de grupos organizados.
Nesse quadro social não se afasta o interesse particular, mas o reconhece quando da sua singularidade abrigada em padrões universais da boa convivência. É a ideia de convivência civilizada na condição multicultural em busca de uma custosa tarefa, a da interculturalidade. Fora desse pressuposto temos o particularismo, com suas perigosas emergências já conhecidas em termos antissociais.
A racionalidade jurídica expressa o movimento insolúvel entre ius condendum e ius conditum, demarcando historicamente a luta histórica por reconhecimentos cujas inscrições nas leis públicas (estatais ou não) permitem demarcar na moldura normativa o grau do entorno da doxa (direito positivo em suas fontes), e dos interesses que emergem e prevalecem na sua reprodução. Trata-se de um movimento um tanto tumultuado e disputado por afirmaçôes de positividade jurídica, atendendo a um duplo retorno ao mundo concreto: a) via referência à leis e b) via soluções mediatizadas pela hermenêutica. Hermenêutica compreendida no plano mais amplo das efetividades heterônomas e espontâneas, abrangendo operadores do Direito, mas també os operadores da política e seus destinatários finais. Sim, neste sentido a aplicação do Direito envolve todo o sistema judicial e boa parte da sociedade civil organizada.
A forma é conteúdo resultante de um jogo tensionado por múltiplos interesses. Não raramente formas jurídicas se deformam cedendo à novas formas cujos conteúdos ajudam (ou não) a sociabilizar indivíduos e grupos num espaço comum mais Comum, vale dizer, de maior densidade agregativa em termos de vivência coletiva. É dizer, um Comum ou núcleo normativo-operacional no qual permite-se transitar com menor ruído comunicacional a diferença sem intolerância, permitindo a realização de um mínimo ético de sociabilidade, ou princípio existencial básico de convivência acima das cosmovisões tribais em condição de possibilitar a partilha do mesmo território físico e simbólico.
Vivemos num mundo plural. Com todas as suas contradicões e tropeços a modernidade anteviu um sociabilidade nova liberta das mistificações e preconceitos presentes nas comunidades feudais da Idade Média. Por certo, as modernizações históricas dos século XIX e XX deixaram seus registros de progressos de emancipação, mas também de regressão. Aí residem os nichos românticos de certas idealizacões comunitárias conservadoras que costumam seduzir seres humanos inseguros, pela via da reação/negação do mundo atual. De fato, o politeísmo de valores no qual Max Weber percebia a sociedade moderna industrial, aquela na qual cada um elegeria seus deuses e demônios, causa um desconforto crescente em certos públicos mais tradicionais, tanto nas áreas mais rurais quanto nos grandes centros urbanos hohe povoado por milhares de tribos. As comunidades tradicionais no Ocidente (tradicionais ou novas) encontram-se dentro da forma de sociedade em termos mais amplos (de mercado, industriais e pós-industriais) em progressão geométrica. No asfalto, nas favelas (esse é o nome, para evitar confusões semânticas), nas metrópoles e nas cidades menores, pululam agrupamentos (religiosos, étnicos, afetivo-sexuais, etc) com padrões morais e éticos diversificados.
Mas o pluralismo e a alteridade por mais confusas possam se revelar suas emergências e desdobramentos sociais e culturais, fixam uma condição irreversível de possibilidade da permanência da própria sociedade multicultural em interculturalidade. Condição importante de lutas por afirmação de subjetividades muito além daquelas típicas fixadas no território do mundo do trabalho. Aqui não cabem juízos morais sobre as contradições, por exemplo, dos movimentos identitários. Elas existem e simplesmente acompanham esse mundo desencantado, como demandas de desejo a serem consideradas na cada vez mais complexa e tumultuada convivência social. O Direito como racionalidade-formal é perpassado por muitas outras formas de dominação tradicionais legadas por milhares de anos, mas é a forma ainda menos problemática de regulação social do poder em sociedades complexas.
As formas normativas – culturais e jurídicas tradicionais defrontam-se com variadas pressões/expressões por atualização de singularidades afirmativas do Universal.
Por certo, pré-compreensões atravessam toda comunicação humana e esta não elimina mas reconhece os ruídos, pré-conceitos e preconceitos, pré-juizos e prejuízos. A divergência é ineliminável e saudável ao forçar passos civilizatórios, pois pedagógicos na convivência de tribos diferenciadas num território cada vez mais exíguo. Tudo dentro de parâmetros de interlocução do campo político reconhecido por configurar ums arena de embate entre adversários ou lugar de intermediação e encaminhamentos de interesses grupais confluentes com uma definição do interesse geral, constitucionalmente resguardados na Constituição que é também normativa no campo social, no sentido também prospectivo da história, vale dizer, esboçando princípios para as situações regulativas futuras.
Quando a arena institucional apta ao confronto entre adversários perde a potência, emergem torcidas de de rivais ou de amigos versus inimigos. É um sinal de esgarçamento da comunicação, pior, de porosidade da própria linguagem, a obstar o fazer boa política, afirmando o ainda incipiente imaginário institucional da Democracia e da República.
O formalismo é muito importante, embora quando seu fetiche, enquanto mimético de ordenação social, torna-se desconectado da capacidade de autorizar uma aproximação entre imaginário político com mentes e corações, dão-se os sinais de desintermediação social. Uma perigosa armadilha, pois permite a insurgência dominante de outras formas de dominação e legitimação. Da mesma maneira, a desqualificação do direito formal, vale dizer, abstrato, impessoal e geral é um atentado contra a cidadania, pois diminui a potência tanto do indivíduo quanto dos seus grupos de pertinência na interação social.
A desatenção com a relevância das Leis positivas, por outro lado, empodera operadores inspirados em critérios de aplicação legal fundados na racionalidade material do direito, um possível indício da degradação da democracia, pois esta é processo comunicativo, histórico (por óbvio, em busca de novos modos de desenvolvimento). O julgamento contra legem somente guarda sentido se legitimado no próprio Direito e sobretudo, de acordo à Constituição.
A crise das instituições da democracia liberal, com muitas razões, expressa-se como um esgarçamento da linguagem. A racionalidade jurídica é parte dessa linguagem. Dela depende a democratização em grande medida, independente da forma de democracia, se liberal ou a construir. A tendência em curso é o que a ultradireita denomina como iliberalimo. Diz tudo sobre o modus operandi de compreender e agir na política e no direito sem dúvidas, uma ruptura com o formalismo conquistado ao longo de muitas lutas históricas.
Até em regimes políticos pré-modernos o direto formal-material já registrava esse movimento tendencial à racionalização geral no qual a esfera jurídica busca a afirmação de uma maior autonomia.
Tomemos um exemplo séculos antes da Razão Jurídica moderna vir ao mundo e um país fora do nosso sistema de Justiça, a Inglaterra com sua Common Law. É o caso de uma conhecida monarca por referência a um súbito que se nega a não obedecer a uma ordem fora dos conformes jurídicos da época.: “Estes prejuros, estes formalistas afetados que prometem muito e não são capazes de executar nada”. Tudo se passa no século XVI.
A passagem acima é da Rainha da Inglaterra e Irlanda, Isabel I ou Elizabeth I (1533-1603) filha de Henrique VIII e Ana Bolena, última representante da Casa Tudor, consolidadora do anglicanismo, esbravejando pela recusa de um carcereiro e assistente em assassinar Maria Stuart (1542-1587) rainha da Escócia (presa em 1568 e morta 19 anos após, em 1587) católica, poupando Isabel da responsabilidade sobre a aplicação da pena de morte à Rainha rival.
Interessante a irritação de Isabel I contra o formalismo daqueles que, obedecendo ao ditames da condenação a ser solenemente executada, recusaram-se ao papel de verdugos, pois assassinos seriam se agissem ao arrepio das normas reais costumeiras quanto à forma é data da execução. Isabel I exclamou que aqueles que se se recusavam a executar sua vontade “não têm outra preocupação senão a de lançar sobre mim o peso da responsabilidade”. No caso a responsabilidade legalmente fixada a qualquer Monarca quanto à observância da Common Law.
O fato histórico acima mencionado ocorreu há cinco séculos, quando o Brasil escravista sequer cogitava possuir alguma Constituição. No Reino britânico o dilema entre Lei, Soberano e o Outro, sujeito, extrapolava o Direito dos barões, aproveitando aos súditos. Já se encontravam ali, desde Constituição (1215), as liberdades reconhecidas, sob forte pressão, pelo Rei João sem Terra (1199-1216).
De lá para cá o constitucionalismo foi se constituindo numa tendência histórica por vários séculos, enquanto garante das relações mercantis e da democracia liberal. Essa ficção é concreta, pois permitiu em muitos países reconhecer e dar efetividade considerável a muitos direitos fundamentais. Mas tudo vem mudando na visão dos iliberais.
As sociedades do século XX digladiaram-se entre formas de capitalismo e socialismo. Em grande medida a Guerra Fria terminou em 1989, quando encerrou-se também a preocupação imediata do sistema capitalista com alguma preocupação com a aceitação e distribuição de Direitos Humanos. Sim, a desobrigação das sociais democracias com esforćos nas políticas integrativas arrefeceu após a queda do muro de Berlim e a derrocada do sistema soviético (1991). As forças canibais do Capital passaram a se realizar mais dinamicamente numa escala mundial ao incorporar e subaltenizar as ex-repúblicas socialistas ofertados ao mercado global doinante (ou melhor, nos mercados que o constituem).
O estado de Direito passa a ser refém da ordem neoliberal com a apologia ao Deus-Mercado e a condenação do Estado Constitucional e suas principais instituições vinculadas à proteção dos trabalhadores e das regras do jogo. A democracia, mesmo sob os limites mercado (as crises o constituem e o reconfiguram), corre risco de ser substituída por regimes autocráticos, pressupostamente mais eficazes para produzir crescimento econômico. Daí a preocupação com a forma jurídica que é mais que forma do direito vigente em ritmo de esvaziamento de suas conquistas sociais. É também um arcabouço defensivo de um formato ainda necessário- na falta de outro, de reconstrução, ou melhor, de reinvenção da regulação social em várias dimensões, da política, da sociedade, do mercado, do meio ambiente, hoje ameaçados. Todas reduzidas e ameaçadas em dada forma de acumulação predadora.
Volto ao título deste texto. A forma jurídica é conteúdo. Conquistas de Direitos Humanos já inscritas na ordem jurídica (direitos fundamentais) revelam pactos políticos, compromissos com reparação de danos e com possibilidades de pensar o acesso à igualdade social, em todas as suas dimensões. No caso brasileiro, a CF/88 é uma convocatória para construirmos um estado de direito e social, efetivos.
Milhões de seres humanos, impactados pela desesperança, descreem na democracia e nas suas instituições. A descrença nas Leis, por mais compreensíveis sejam suas razões, é o caminho aberto para que à racionalidade jurídica formal moderna se sobreponha uma vontade populista autoritária, erguida sob critérios particulares que tipificam a racionalidade material, uma espécie de dominação tradicional, pré-moderna. Ela emerge não pela extinção do Estado de direito mas por sua subalternização à vontade de dado líder carismático legitimado na retórica de valores não republicanos e laicos, substituídos por um apelo direto ao povo, convocado à uma revolta contra quase todas instituições modernas, da representação política ao mercado, sobretudo, contra o sistema judicial, tomando o Poder Judiciário, como exemplo mais visível da “desordem”, como o pior dos males existentes.
Questão: a quem serve a desqualificação formal das instituições da democracia liberal levada a cabo por diferentes grupos sociais nos procedimentos da política? Com todos os seu impasses o estado de direito constitucional é o que ainda temos para confrontar o poder dos que possuem mais poder e dinheiro. Na falta de um outro formato para a regulação social e jurídica temos que cultuar no imaginário da política o sentimento de orgulho de termos uma Constituição sonhada por Ulisses Guimarães, e gritar em alto e bom tom: “A forma jurídica é conteúdo possível na história”, expressando arranjos, recuos, mas também conquistas sociais de todos, meio e fim para construirmos e vivermos num estado de direito, vale dizer, da Lei contra todas as formas de barbárie”.