Tem uma história antiga de que houve uma enchente numa cidade, e uma casa, construída numa baixada, começou a ser inundada. O morador, desesperado, pôs-se a rezar clamando ajuda dos céus. Nessa hora passou uma canoa e o canoeiro o chamou para entrar. O homem se negou dizendo que Deus iria tirá-lo dali. À medida que a chuva continuava a água subia. Passou um outro barco, desta vez a motor. As pessoas que estavam no barco o convidaram para ir com elas a um lugar seguro, mas o fiel insistiu em ficar.
Como a água não parava de subir, o homem subiu no telhado da casa e voltou a clamar ajuda divina. Nessa hora, passou um helicóptero que desceu uma cadeirinha até ele numa corda. Teimoso, deu sinal que não ia. A chuva aumentou e ele acabou sendo levado pela correnteza e, como não sabia nadar, morreu afogado.
Ao chegar no céu, foi logo reclamando para São Pedro: “Deus não atendeu à minha oração!”, disse ele. Pacientemente, S. Pedro respondeu: “Como não atendeu, filho, se Deus lhe mandou a canoa, o barco a motor e até o helicóptero para te salvar? Você que não aceitou ajuda”.
Essa velha história me lembra muito a situação dos manifestantes bolsonaristas acampados em frente aos quarteis pelo Brasil afora. Deus já mandou vários sinais para que voltem para suas casas e sigam suas vidas normalmente, mas eles parecem não entender os alertas.
Nem falo apenas das incessantes chuvas que têm caído desde o início de novembro. Em Brasília não teve um só dia de sol no mês passado. São chuvas de vento, granizo, raios e trovões. Apavora até quem tá abrigado sob um teto seguro. Mas os bolsonaristas continuam firmes esperando um golpe militar.
Falo dos sinais da própria política. Todos os dias os bolsonaristas criam uma nova narrativa para manter os manifestantes iludidos de que alguma coisa está para acontecer. São fake news diárias, algumas sem pé nem cabeça, como a que anunciou a prisão do ministro Alexandre de Moraes logo após o fim das eleições.
E as inverdades não se limitam apenas a política brasileira. A fábrica de narrativas dos influencers bolsonaristas não para. Durante as eleições para o parlamento americano, surgiu a versão de que o ex-presidente Donald Trump iria assumir a presidência da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos no lugar da Nancy Pelosi. Em seguida, Trump enviaria tropas para ajudar Bolsonaro a virar o jogo do Brasil. Quanto delírio!
Há alguns dias criaram o factoide das urnas, que acabou colocando o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, em apuros. Além de negar o pedido de anulação do segundo turno, o ministro Alexandre de Moraes ainda aplicou uma multa de R$ 22,9 milhões à coligação de Bolsonaro, formada pelo PL, Progressistas e Republicanos. Os dois partidos pularam fora do barco, deixando o PL arcar sozinho com a despesa.
Mesmo as narrativas indo por terra dia após dia, os bolsonaristas não perdem a fé e continuam acreditando que algo sobrenatural vai acontecer. Nem mesmo o comportamento de Bolsonaro revelando total descaso com o país e com os próprios “devotos”, faz com que essas pessoas caiam na realidade.
Isolado no Alvorada desde a derrota, Bolsonaro sequer agradeceu aos mais de 58 milhões de votos que recebeu, apesar do péssimo governo que fez. Não demonstra o mínimo de compaixão com a situação dos seus “devotos” que estão vivendo em meio a chuva, frio, usando banheiros químicos e rezando ajoelhados clamando a Deus por uma ajuda, tal qual o homem da enchente.
Tivesse um mínimo de visão política – nem precisaria ser um estadista – Bolsonaro aproveitaria esse capital político que ainda lhe resta para se cacifar com principal liderança de oposição ao governo Lula, ao invés de desejar que esse bando de malucos acampados ou fechando rodovias em alguns estados continuem pedindo golpe.
Aliás, era isso que o PL esperava de Bolsonaro. Deputados recém eleitos pelo partido confidenciaram que estão decepcionados com essa postura infantil do presidente. Desejavam que ele se mostrasse um verdadeiro líder que pudesse impulsioná-los a voos mais altos e não é o que está acontecendo.
A viagem do deputado Eduardo Bolsonaro, o filho 03 do presidente, para assistir aos jogos da Copa no Qatar, foi um soco na cara desses manifestantes. Nem assim eles acordaram. A justifica de que teria ido ao país sede da Copa do Mundo entregar pen-drivers aos líderes mundiais para mostrar a situação do Brasil é tão mal contada quanto as narrativas conspiratórias criadas para mobilizar a militância. Deveria ter assumido que foi se divertir, teria sido mais honesto com seus compatriotas, sobretudo àqueles que estão vivendo embaixo de lonas e pedindo socorro aos ETs.
Bolsonaro e seus filhos passaram quatro ano zombando da inteligência e da paciência da população. Sempre criando brigas, intrigas, teorias conspiratórias. Não governou, perdeu a eleição para ele mesmo e agora não admite a derrota. Sabe que a situação é irreversível, não tem como brigar com a realidade, mesmo assim ele e sua trupe estimulam os manifestantes a continuarem em frente aos quarteis pedindo um golpe. Outro dia o seu companheiro de chapa, general Braga Neto, pediu a uma mulher que tivesse paciência e aguentasse mais um pouco, ao invés de mandá-la voltar pra casa, já que nada vai mudar a realidade.
Daqui a menos de um mês Bolsonaro estará fora do Palácio do Planalto e Lula terá assumido seu terceiro mandato. Será que os bolsonaristas acreditam mesmo que até o dia 31 de dezembro alguma coisa vai acontecer para mudar o curso da história? Mas afinal, quem são essas pessoas? O que elas querem de fato, um golpe que devolva o poder que o próprio Bolsonaro abandonou?
Enquanto os militantes acampados esperam um golpe militar, no mundo real a vida segue normalmente. Os brasileiros estão curtindo a Copa, se preparando para os festejos e final de ano, férias e para a posse do futuro presidente, que já está sendo preparada, inclusive com todo o apoio do governador do DF, Ibaneis Rocha, até pouco tempo aliado de Bolsonaro.
Em breve Lula vai anunciar seus ministros e vem costurando apoios no Congresso, inclusive dentro da base de apoio ao atual governo. Enquanto isso, Bolsonaro vai perdendo força e aliados – parte do Centrão já se foi. Os militares, antes carrancudos, já começaram a mudar o semblante com a provável nomeação do ex-ministro do TCU José Múcio para a Defesa. Tranquilo, conciliador, certamente vai conseguir acalmar os ânimos dentro dos quarteis.
Enfim, as coisas vão se ajeitando e os bolsonaristas continuam à espera de um milagre. Até quando?