A Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) publicou, em 2015, um livro – intitulado Loucos e memoráveis anos – destinado a comemorar os cem anos de fundação do jornal O Estado, que circulou em Santa Catarina entre 1915 e 2009.
Como se vê, por seis míseros anos, o jornal não chegou ao centenário, mas a data foi efusivamente festejada pelos que nele trabalharam.
A obra traz o depoimento – muitos deles belamente escritos – de cerca de 60 homens e mulheres que atuaram por lá entre o começo dos anos 1960 e o falecimento traumático daquela folha, que chegou a agonizar como semanário, por um ano e meio, antes de baixar à sepultura.
Os jornalistas Laudelino José Sardá e Mário Medaglia organizaram essa publicação que, na verdade, é um belo esboço do que foi a história do jornalismo impresso catarinense na segunda metade do Século 20.
Setembro de 1971 e maio de 1986
Simplificando ao máximo, há duas datas decisivas na vida de O Estado. A primeira delas é setembro de 1971, quando foi fundado em Blumenau o Jornal de Santa Catarina, que veio para brigar com a gazeta florianopolitana, que era, à época, o principal veículo barriga-verde.
Forçado pelo concorrente, O Estado abandonou às pressas suas linotipos para ingressar, em 1972, na era da impressão em offset. E aumentou, com muitos gaúchos, seu quadro funcional.
A segunda data relevante é maio de 1986, quando se instala na capital o Diário Catarinense – pertencente do grupo RBS – autonomeado o primeiro jornal totalmente informatizado do país, que logo dominou o mercado local e acabou exterminando o adversário.
Os melhores anos de O Estado foram justamente os que se encontram entre essas duas datas: toda a década de 1970 e a primeira metade dos anos 1980.
Boca-de-sino
Trabalhei naquela folha entre 1976 e 1978 (depois de outubro de 1977, como correspondente em Brasília). Nesses dois anos, no intenso dia-a-dia das reportagens, eu – que havia me graduado em 1975, na Universidade Católica de Pelotas – me formei de fato jornalista. Com direito a usufruir do figurino típico da classe na época: bolsa de couro a tiracolo, calça boca-de-sino, barbicha de vietnamita e cabelama cacheada ao vento. E basqueteando, sem folga, de segunda a segunda, sem reclamar.
Pelotenses em Floripa
Desembarquei em Florianópolis em junho de 1976, com 22 anos, para trabalhar na então populosa sucursal (dez jornalistas) da capital catarinense do grupo Caldas Júnior, que editava os jornais Correio do Povo, Folha da Tarde e Folha da Manhã, em Porto Alegre. A Caldas contava ainda com meia dúzia de correspondentes nas maiores cidades catarinas.
Eu vinha “transferido” da sucursal da Caldas em Pelotas, onde fora contratado, em julho de 1975, como operador de telex, embora fosse de fato o setorista de Polícia e Esporte.
A Caldas Júnior, por esse tempo, estava estruturando – com Antônio Britto e Edgar Lisboa nas cabeças – a sua poderosa Central do Interior, que coordenava a ação dos correspondentes por todo o interior do Continente de São Pedro e nas sucursais além-divisa.
No começo de 1977, tive a companhia de dois jornalistas pelotenses formados pela Católica: Beth Nogueira (da minha turma) e Luiz Lanzetta (de turma anterior). Beth desenvolveu toda sua carreira profissional naquele Estado, trabalhando por mais tempo no DC. Já o Lanzetta, após uma demorada incursão paulistana, homiziou-se em Brasília, onde pode ser localizado hoje.
Esquisitice
Uma curiosidade: em meados dos anos 1970, o Correio do Povo era o jornal mais lido no Oeste de Santa Catarina, cujas principais cidades foram fundadas por gente saída do Rio Grande do Sul, na maioria descendentes de imigrantes italianos. Os times de maior torcida por lá eram Grêmio e Inter. A Chapecoense só nasceria em 1973.
Pancadaria e tragédia
Entre os fatos mais marcantes, para o jornalismo barriga-verde nos anos 70 do século passado, os colaboradores de O Estado destacam um trágico e um cômico.
O episódio bufo, a “novembrada”, ocorreu naquele mês de 1979, quando o então presidente da República, general João Figueiredo, em visita à capital, se dispôs a tirar o paletó e a arremangar-se para sair no tapa, no meio da rua, no centro da cidade, com estudantes que o apupavam. Esse acontecimento, cautelosamente escondido pela mídia local, só foi divulgado nacionalmente porque os grandes veículos do País mantinham correspondentes naquela povoação.
Outro fato relevante, que exigiu um enorme esforço de cobertura jornalística, foi a queda, no interior da Ilha, de um avião da Transbrasil, com 50 passageiros, dos quais só sobreviveram três.
A descoberta das praias catarinenses
Talvez se possa dizer que os anos 1970 foram aqueles em que os gaúchos descobriram a capital catarinense. A BR 101, mesmo que ainda não duplicada, permitia cruzar em menos tempo os quinhentos quilômetros que separam as duas capitais do Sul. As decantadas 42 praias de Floripa passaram a ser o sonho de verão de muitos rio-grandenses do Sul.
Florianópolis tinha 98 mil habitantes em 1960. Sua população praticamente dobrou em duas décadas, chegando aos 187 mil moradores em 1980. Portanto, quando me mudei para lá, ainda era uma cidade tranquila e de trânsito civilizado. Os assassinatos anuais podiam ser contados nos dedos das mãos.
Como setorista de Geral, sempre necessitando obter informações de órgãos do Governo estadual – sediados quase todos no centro -, eu me movimentava a pé. Em duas horas de caminhada, a passos de cágado, conseguia descolar duas ou três reportagens.
Clima ameno
Por estar encravada entre dois estados cujos litorais não dispõem de tantas praias bonitas, Santa Catarina passou a sofrer uma massiva invasão todo ano – nos meses de verão – de gaúchos, paranaenses e paulistas.
Mais que isso, deslumbrados também com o clima, mais ameno que o das frias Curitiba e Porto Alegre, profissionais das mais diversas áreas começaram a se bandear para lá. E o mesmo foi feito pelos paulistas que desejavam escapar ao cotidiano massacrante da megalópole.
Hoje, com 570 mil habitantes (a zona metropolitana alcançando 1,2 milhão), Florianópolis nada fica a dever às demais capitais brasileiras nos quesitos mais problemáticos, como violência e trânsito.
Jornalistas gaúchos
A presença maciça de jornalistas gaúchos na Imprensa de Santa Catarina começou com a criação, em Blumenau, do Jornal de Santa Catarina, implantado por uma equipe de profissionais formados, em Porto Alegre, pela PUC e pela UFRGS (pronuncia-se Urguís).
A esquadra capitaneada por Nestor Fedrizzi contava com Mário Medaglia, Nei Duclos, Virson Holderbaum, José Antônio Ribeiro (Gaguinho), Cinara Ribeiro, Renan Ruiz, Paulo Cícero Casanova, Nilva Machado, Paulo Becon, Sérgio Becker e Ayrton Kanitz.
Santa Catarina só começaria a formar sua própria mão de obra depois da criação do Curso de Jornalismo, em 1979, na Universidade Federal.
Uma breve vida acadêmica
Em minha outra incursão por terras catarinenses, no segundo semestre de 1985, fui professor de Técnicas de Jornalismo na UFSC. Protagonizei então o mais meteórico trajeto de todos os que ensinaram por lá: permaneci pouco mais de dois meses na cátedra.
Por que foi tão breve essa minha passagem pela Academia da cidade de Floriano Peixoto?
Por excesso de quilometragem entre casa e trabalho: cerca de mil e quinhentos quilômetros por semana, seis mil por mês.
Como?
Depois de aprovado professor em concurso de provas e títulos daquela Universidade, em setembro de 1985, me transferi, com Luísa e gurizada, de Brasília para Pelotas. Lá, morávamos em um edificiozinho na frente da fábrica da Pepsi.
Passei a viver numa movimentadíssima “ponte rodoviária”. Embarcava às 8 da noite de domingo a tempo de chegar em Portinho para apanhar o busão que me levaria a Florianópolis, onde eu desembarcava às seis da matina. Quinta à noite fazia o trajeto inverso.
Nem mesmo um monge cartuxo aguentaria aquela mistura mortal de quilometragem elevada com o salário melancólico de um Professor Auxiliar 1.
Jornalismo como profissão
O livro Loucos e memoráveis anos é também um réquiem pelo jornalismo impresso. A rigor, a profissionalização da nossa imprensa começa para valer no final dos anos 1960, com a criação da Veja, e mal chega à virada do ano 2000, quando principia a acelerada trajetória descendente dos veículos impressos.
A época em que os operários da imprensa – nos principais veículos do País – conseguem viver de uma só fonte de renda, ganhando bem, durou de três a quatro décadas.
Antes, como ensinam livros que traçam a história do nosso periodismo, os trabalhadores do ramo precisavam de dois ou mais bicos para inteirar o feijão.
Muitos desses escribas de dupla cidadania, claro, trabalhavam para órgãos do Estado. Havendo um conflito de interesses, perguntavam-se: para que santo devo acender a vela mais cara?
Em Santa Catarina, nos anos 1970, os profissionais da mídia impressa passam também, em bom número, a viver (mal, digamos) de um só contrato.
Alegria, alegria
O que quase todos os entrevistados de Loucos e memoráveis registram é o pique, a gana, a garra, a loucura e a alegria com que foram vividos aqueles anos nas turbulentas e enfumaçadas redações.
Na sua imensa maioria, os jovens editores e repórteres eram contrários ao regime militar, que combatiam de todos os modos possíveis. Formavam uma geração que se achava a rainha-da-cocada-branca, uma geração que viera para botar tudo abaixo: com guitarras tocando roque, cigarrinhos heterodoxos sendo acesos e o máximo de sexo (ainda sem camisinha) possível.
Mas a verdade, como dizia o poeta Belchior, é que essa geração – hoje, entre 70 e 80 anos, majoritariamente aposentada – agora está em casa, guardada por Deus e, exatamente como seus pais, contando o vil metal para fazer frente à conta da farmácia.
* Lourenço Cazarré é jornalista e escritor