A Dama que veio da Cortina de Ferro

Que tal encontrar um mandatário brasiliano o qual, hospedado num hotel, desce até o restaurante à noite para tomar um prato de sopa? Desacompanhado. Esta é uma das histórias sobre a mulher que liderou a Alemanha por 16 anos, e que podem ser lidas aqui

Angela Merkel, chanceler da Alemanha e a mulher mais poderosa do mundo

Eu morava, havia alguns anos, num complexo hoteleiro situado ao lado do Palácio da Alvorada, em Brasília. Com o passar do tempo, acabei fazendo amizade com os servidores do hotel, com os quais conversava do futebol à política. Ali, com frequência, hospedavam-se chefes de Estado e de governo. Sempre cercados de forte esquema de proteção. Corria o ano de 2015. Almoçando, num dia qualquer, fui abordada por uns dos garçons que me informou ter atendido, em altas horas da noite anterior, uma senhora, desacompanhada, que desejava apenas tomar uma sopa. Tratava-se, ninguém mais ninguém menos, do que a poderosa chanceler (primeira-ministra) da Alemanha, Angela Merkel. Sozinha, sem holofotes da imprensa, sem nenhum agente de segurança a cercá-la, tomou sua sopa tranquilamente, despediu-se gentilmente dos funcionários e se recolheu a seus aposentos.

No mesmo ano, tive a oportunidade de visitar Berlim. Por coincidência, almocei num restaurante situado na mesma rua em que se localizava o apartamento particular de Angela Merkel, onde ela e o marido viviam. Discretamente, uma viatura da polícia estava postada na esquina. Perguntei pelo motivo, pois os policiais não se deslocavam dali.  Acabei sabendo, também pelo garçom, que a chanceler morava naquela quarteirão. E que todos estavam habituados a vê-la no restaurante, na padaria próxima ou no supermercado situado na quadra seguinte. O marido e ela faziam pessoalmente suas compras de gêneros alimentícios e bens de utilidade doméstica. Nenhum jornalista a segui-los, nenhum agente de segurança a resguardá-los. Evidentemente, Merkel atendia aos pedidos de fotos, com polidez e solicitude, mas com sua conhecida postura entre a reserva e a timidez. Passei a me interessar mais por esta importante e discreta figura política.

Quântica russa?

Os alemães tiveram-na como maior autoridade do país por dezesseis anos. Neste período, aprenderam muito com esta professora de física, doutora em química quântica, mais fluente no russo do que nas línguas ocidentais. Agora, ela resolveu que é hora de pedir o boné.

 

Angela, ainda bebê, com os pais
Aos 23 anos, Angela Merkel com duas amigas

Filha de um pastor luterano de Hamburgo, que resolveu mudar-se com a família para a antiga Alemanha Oriental, Merkel destacou-se nas jornadas por liberdade e democracia nos idos de 1989, jornadas estas que culminaram com a queda do Muro de Berlim. Após a unificação alemã, tornou-se ministra do Meio Ambiente do governo do democrata-cristão Helmut Kohl  e, aos poucos, foi sendo galgada aos postos mais elevados na hierarquia de seu partido (CDU). Quando os social-democratas (SPD) perderam as eleições para os democrata-cristãos, em 2005, Merkel já estava pronta para tornar-se primeira-ministra, cargo que só agora deixará, após a formação do novo governo, a partir dos resultados das eleições de 26 de setembro.

Merkel sai de cena como estadista. A estadista que veio da Cortina de Ferro. Sua imagem de “dura na queda” não se confunde com a de outra política, conservadora como ela: a “Dama de Ferro”, Margaret Thatcher. Diferentemente de sua homóloga britânica, Merkel sempre soube transigir. Jogou pesado com os gregos na crise financeira que se seguiu à debacle de 2008, mas abriu-lhes linhas de crédito; a despeito de sua formação acadêmica e dos impactos econômicos, ousou desligar as usinas nucleares alemãs, depois do desastre de Fukushima. Merkel não vacilou em cruzar o corredor e procurar os social-democratas, seus adversários, para formar um governo de “grande coalizão” a fim de garantir a governança numa Alemanha parlamentarista. Apoiou, sem tergiversar, a eleição do líder do SPD, Frank-Walter Steinmeier, para a chefia do Estado. Surpreendeu quando escolheu uma mulher, Ursula von der Leyen, para o cargo de ministro da Defesa, que, atualmente, é a presidente da Comissão Europeia. E para o lugar deixado por von der Leyen, na Defesa, designou outra mulher.

Sem manobras vis 

1991: a futura chanceler alemã com seu aliado Helmut Kohl

Muitos a criticaram por sua frieza, quando, em 2014, defendeu a  deportação de uma jovem refugiada palestina, que vivia há anos na Alemanha, e fora educada na língua e na cultura alemãs. Não só, depois, recuou da decisão do governo de deportar a jovem como, surpreendentemente, bancou a entrada de 500 mil sírios que fugiam da guerra fratricida em seu país. Merkel foi firme nos princípios e demonstrou tirocínio: além de ressaltar o imperativo humanitário para um povo marcado pela busca desesperada de refúgio alhures, durante o século XX, lembrou que o retrocesso demográfico implicava que a Alemanha se abrisse aos sírios, muitos deles bem qualificados, para recompor a população germânica economicamente ativa. Por outro lado, reconheceu, faz algumas semanas, o erro de seu governo por ter autorizado a deportação de afegãos, pouco antes de o Talibã retomar o poder em Cabul. Com Merkel não há mistério ou “meias verdades”. Ela assume os ônus e os bônus de suas decisões.

Merkel com a rainha Elizabeth II, do Reino Unido

Vai-se uma política que merece respeito. Se fosse preciso citar um momento que marcará o seu governo, mencionaria um de que poucos se recordarão, mas que retrata traços da higidez de seu caráter: a intervenção que fez na direção regional da CDU, no Estado da Turíngia, quando seus correligionários, para impedir a formação de um governo estadual de esquerda, aceitaram fazer, por debaixo dos panos, uma aliança oportunista com a extrema direita, nostálgica da Grande Alemanha nazifascista, representada pelo partido chamado “Alternativa para a Alemanha”. Merkel usou de seu braço forte para destituir todos os pescadores de águas turvas em seu partido e anular a vil manobra.

Merkel, que já viveu sem liberdade, conhece muito bem, por experiência própria, a importância de não se abrir mão  dela. E luta por isso com todas as garras.

*Advogada, mestre em Ciências Políticas (UFMG) 

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