Quando a analogia funciona, a inteligência descansa. Ouvi esta frase há uns dez anos atrás e ela se encaixa perfeitamente na atual conjuntura.
Na última sexta-feira, após um tsunami de protestos relevantes e a quebra do sigilo do senador Bolsonaro, o presidente da República divulgou uma análise sobre as dificuldades de governantes eleitos realizarem a vontade de seus eleitores, atribuindo aquelas a um sistema de corporações públicas e privadas, em clara alusão aos parlamentares, movimento sindical e ministros do STF.
Embora não tenha compartilhado nenhuma mentira – talvez o texto tenha apenas esquecido de outras corporações – imediatamente o establishment da análise política começou a comparação com a renúncia de Jânio Quadros ou com o Impeachment de Collor de Mello. Isso porque a nova direita convocou uma manifestação em apoio à reforma administrativa, à Nova Previdência e ao pacote anticrime para o próximo domingo, 26 de maio, com suporte dos caminhoneiros que são, para o bolsonarismo, o que o movimento sindical é para a esquerda.
Mais adequado, então, seria comparar com o Plano Cohen, um documento elaborado por militares ligados a Getúlio Vargas, em 1937, para simular a preparação de uma revolução comunista, que o trabalhismo usou como pretexto para implantar o Estado Novo. Bolsonaro dispõe do dispositivo constitucional de estado de sítio ou de defesa (um conflito externo, como com a Venezuela, é um dos motivos), para lançar mão contra uma ameaça que una a maioria de seus eleitores e possa tornar mais célere, digamos, as reformas e a apuração de casos de corrupção. Já está internalizado nas bases da nova direita que as reformas são tão importantes como foi a eleição de seu capitão.
O governo tem dados de que o caso Flávio Bolsonaro ainda não impactou sua militância. E a aprovação do pai até agora caiu puxada por não-eleitores dele e nas regiões e faixas de renda que lhes deram menos votos nas eleições 2018, e não pelos indicadores socioeconômicos. Se o vetor que elegeu o capitão foi a anticorrupção, este seria também seu calcanhar de Aquiles e, naturalmente, ele lutaria para escapar do corner.
Só que Bolsonaro não delira ou se deixa influenciar por teorias da conspiração (como se a arte não imitasse a vida). Há um cerco real que pode tornar o governo se tornar um “lame duck”. Juntos, o poder judiciário e o legislativo tem em suas mãos pautas-bomba que correspondem a um risco fiscal de R$ 1,5 tri ao governo, soma maior do que a economia prevista com a reforma da Previdência. Ou seja, impediria muito mais do que Bolsonaro se reeleger, como antecipou o deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), no Dia dos Trabalhadores.
A mais grave delas é o crédito que o governo pediu de R$ 248,9 bilhões para o cumprimento da Regra de Ouro, sem deixar de cumprir as despesas com o BPC e a aposentadoria rural, que o parlamento pode negar (apesar de jurar proteger as duas medidas a ponto de serem as ameaças de desidratar a PEC 06|2019).
Está nítido que a nova direita reagiu para desidratar e derrotar definitivamente o centro tradicional, que foi a matéria prima do surgimento dela e é a quem ela pretende suplantar como alternativa à direita social. A esquerda é apenas o inimigo externo, cujo êxito residiria na degeneração de práticas e valores de partidos tradicionais como o MDB, o PSDB e as legendas do Centrão.
E é este campo que, até as obras de arte da Praça dos Três Poderes sabem, derrubariam o governo se tivesse musculatura para isso. Não à toa, uma fórmula em que o PT entra com a base social e o establishment político com os votos para uma eventual deposição do presidente já está sendo gestada desde o Primeiro de Maio, quando Paulinho chamou o sindicalismo para se unir ao Centrão para desidratar a reforma. Maia, no fim de semana, disse que o Brasil precisa não só da reforma, mas combater um o desemprego, um discurso de grande apelo no eleitorado lulista.
Bolsonaro foi puxado à guerra pelo suposto “direito ao toma lá dá cá” e é errada a visão de que Rodrigo Maia está no comando do processo. Ele está é fragilizado por ter sido citado na delação do empresário Henrique Constantino (Gol). É a nova direita que tem um trunfo contra ele, a ser usado nas redes. Ademais, deputados do PRB, PSD e PR tem defendido que suas siglas se descolem de Maia e atuem sozinhos. O líder do Podemos, José Nelto, rompeu com superbloco nesta semana. Uma rebelião interna, prenunciando o enfraquecimento do presidente da Câmara. A única chance do establishment político é Lula.
Engana-se, por fim, quem aposta que os militares e a ala econômica iriam aderir a uma deposição, mesmo que branca, de Bolsonaro para salvar o “projeto econômico”. Nos quartéis, o presidente é o “mito” e os generais do governo não aceitariam o risco de se desgastar na base que os reabilitou – a nova direita. Apenas almejam um lugar de igualdade. Já a ala econômica sabe que jamais teria a oportunidade que tem fora do escopo da nova direita no governo. Já Olavo de Carvalho (guru da ala antiestablishment, hegemônica na nova direita governista) anunciou que não comentará mais os assuntos do governo, e o presidente Jair Bolsonaro autorizou a luta da nova direita parlamentar para lhe devolver o Coaf. Não há cizânia real.
No mais, as medidas provisórias pendentes serão aprovadas com algum nível de acordo, a Nova Previdência avançará como tem avançado – apesar das bravatas – e o presidente não cederá ao Jogo de Brasília. A luta nova direita x centro é pela hegemonia não apenas política, mas ideológica, moral e cultural. In other words, entre a alt-right e o globalismo conservador, que moldou o mundo após o fim da Guerra Fria.