A Organização Internacional do Trabalho (OIT) lança alerta para o problema da expansão do trabalho infantil. Segundo a OIT, o número de crianças e adolescentes, meninas e meninos, envolvidas em trabalho infantil, chegou a 150 milhões em todo o mundo, com o aumento de 8,4 milhões entre 2016 e 2020. Outros 8,9 milhões correm os mesmos riscos, vítimas da crise econômica e social provocada pelo Covid-19.
O Relatório da OIT ignora o Brasil. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), referentes a 2019, indicam, porém, que 1,758 milhão de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos de idade, são utilizadas em alguma modalidade de trabalho proibido, precário, mal remunerado, dos quais 706 mil nas piores condições possíveis. A retração econômica e o aumento do desemprego, hoje da ordem de 14,8%, contribuíram para aprofundar a tragédia, como revelam os números colhidos pela Unicef em São Paulo.
Foram pesquisadas 52.744 famílias em condição de vulnerabilidade. Apurou-se a intensificação do trabalho infantil, com aumento de 26% entre famílias entrevistadas em julho, comparativamente aos dados levantados no mês de maio.
A rigor, basta circular por São Paulo para constatar a extrema gravidade do problema. Não bastassem milhares de drogados e de moradores de rua, precariamente abrigados sob barracas de plástico preto, nas ruas e avenidas encontramos meninas e meninos, crianças e adolescentes, jogando malabares, dando saltos-mortais, equilibrando-se em monociclos, vendendo balas e chocolates a R$ 2,00.
Nas vias marginais disputam com adultos no comércio de amendoim torrado e garrafas de água mineral. É comum encontrar homens e mulheres puxando pequenas carroças, sob sol ou chuva, para coleta de vidro, alumínio, papel e papelão, acompanhados de um ou dois filhos e do fiel cão vira-latas.
Não falo de Porto Príncipe, capital do Haiti, de Niamei, capital do Niger, de Mogadíscio, capital da Somália, ou de campo de refugiados do norte da África. Refiro-me à cidade mais desenvolvida e rica do País, como poderia falar de Brasília, do Rio de Janeiro, Manaus ou Recife. A chaga aberta e sangrenta do trabalho infantil está presente em milhões de famílias situadas abaixo da linha da miséria, obrigadas a fazer uso de recursos lícitos e ilícitos para mal sobreviver
A exploração do trabalho de adolescentes e crianças compromete o Brasil, 9ª ou 10ª economia do planeta, cuja trintenária Constituição fracassou no que concerne à proteção aos direitos humanos, ao amparo à família, à criança, ao adolescente, ao jovem e ao idoso.
Escrita e promulgada por maioria constituída de nefelibatas, ou demagogos populistas, a Lei Estrutural prometeu coisas que a rica e culta Suíça talvez não prometesse por não conseguir converter em realidade. Os resultados são conhecidos. Veja-se o texto do Art. 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
É desnecessário ir a grotões dos Estados pobres. Basta circular nas imediações do Palácio do Planalto e da Esplanada dos Ministérios para se perceber a carga de falsidade contida no dispositivo constitucional.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069, de 13/07/1990, transborda boa-vontade e utopia. Integra vasto elenco das leis que não pegaram. Foi elaborada por sonhadores que tomaram, como bases, teses acadêmicas, mas não os fatos; como material as ideias e não as famílias; as gerações futuras e não as atuais, nas palavras de Oliveira Vianna.
Governado por cérebros amebianos, o Brasil continuará cego e surdo às advertências da OIT e da Unicef. Serão organizados congressos, seminários, encontros e aprovados documentos sobre a erradicação do trabalho infantil. Ninguém trará, porém, projeto objetivo com propostas ao nosso alcance. Acorrentado ao subdesenvolvimento e vítima crônica da corrupção, o País não se dispõe a reservar recursos humanos e materiais para enfrentar o dramático problema. A chaga está aberta e sangra. Assim permanecerá.
— Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho. Autor do livro “A Falsa República”.