George Orwell escreveu 1984 em 1948 como uma descrição das forças que ameaçam a liberdade e da necessidade de resistir a elas. Não há como deixar de associar as situações extremas relatadas com as ameaças à democracia que aconteceram e acontecem em muitos países, à direita e à esquerda, em maior ou menor grau, assim como ele teve como inspiração o regime stalinista.
Orwell cria uma linguagem, a novilíngua (ou novafala em algumas traduções) com expressões que refletem o ambiente de repressão relatado. Em novilíngua, duplipensamento significa a capacidade precavida de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e acreditar em ambas, por exemplo, acreditar que a democracia era impossível e que o Partido era o guardião da democracia. Nada estranho para quem se diz democrata e pede fechamento do Congresso, intervenção militar ou exalta ditaduras – aqui ou em Cuba. Ou governos que lançam programas pela manhã e os classificam como insanidade à tarde. Ou simpatizantes de autocracias com aparência democrática, os chamados iliberais.
Na história, o ato essencial do Partido no poder consiste em “usar o engodo consciente sem perder a firmeza de propósito que corresponde à total honestidade”, lembra as fake news propagadas quase oficialmente; e milicianos e rachadinhas versus supostas estatísticas de honestidade seletiva. Ou governantes que se auto declaram ” o mais honesto” depois de comandar o maior assalto aos cofres públicos.
No evento “Dois minutos de Ódio” que acontece regularmente na história como preparativos para a “Semana do Ódio”( na história não aparece um gabinete dedicado a isso), todos são induzidos ao paroxismo de gritar slogans e atirar objetos nas teletelas que mostram os inimigos, teletelas que estão em todos os lugares vigiando todos. Em seguida gritam exaltações histéricas “G-I!…,G-I!…,G-I!…” quando aparece a figura do Grande Irmão, um grande mito. Nunca deixe de berrar junto com a multidão, só assim você estará em segurança, é a recomendação.
Os adeptos mais fanáticos do Partido eram os devoradores de slogans, os espiões amadores e os farejadores de ortodoxia que parecem figuras que circulam nas redes sociais e grupos de WhatsApp. A mulher de Winston, o personagem principal, era incapaz de formular um só pensamento que não fosse um slogan, assim como não havia uma imbecilidade que ela não engolisse se o partido assim o quisesse.
Em novilíngua, criminterrupção significa “a capacidade de parar, como por instinto, no limiar de todo pensamento perigoso ou pensamento-crime. O conceito inclui a capacidade de não entender analogias, de deixar de perceber erros lógicos, de compreender mal os argumentos mais simples, caso sejam antagônicos ao Partido, e de sentir-se entediado ou incomodado por toda sequência de raciocínio capaz de enveredar por um rumo errático”. Lembra debates no Facebook e a vigilância da cultura do cancelamento, que procura constranger quem manifesta opinião divergente.
A heresia das heresias era o bom senso. Um conceito fundamental é a mutabilidade do passado. No Ministério da Verdade, o trabalho consiste em apagar sistematicamente as informações do passado que contrariam o presente, como metas não cumpridas, pedaladas ou vaporizando (cancelando, aniquilando) pessoas que passam a inimigas, talvez como dissidentes do Partido ou ex-ministros. Esses passam a ser despessoas, muitas torturadas no Ministério do Amor. Afinal, “quem controla o passado controla o futuro, quem controla o presente controla o passado” é lema do Partido.
A polícia das ideias mantém as teletelas em todos os lugares, capazes de perceber até um rostocrime (em novilíngua), que significa ostentar uma expressão inadequada em alguma situação como, talvez, duvidar de alguma proposta do governo e virar inimigo. Hoje uma postagem no Twitter ou Facebook pode causar o mesmo efeito.
Se você quer formar uma imagem do futuro, imagine uma bota pisoteando um rosto humano – para sempre, conclui O’Brien, o torturador de Winston, preso por pensamento-crime, depois de explicar a ideologia que move o Partido.
Mesmo longe dessas situações extremas, é sempre bom estar antenado com assustadoras distopias na literatura.
O mundo precisa resgatar as virtudes da tolerância e da empatia. O resultado das eleições americanas pode ser um ponto de inflexão na polarização nefasta que se espalhou também no Brasil.
(*) Evandro Milet é consultor e palestrante, com mestrado em TI na PUC – RJ e escreve regularmente no A Gazeta online de Vitória ES