Mal saiu o resultado das urnas, anunciando Luís Inácio Lula da Silva como presidente da República eleito, irromperam Brasil afora palavras preconceituosas contra o Nordeste e o seu povo.
Esse preconceito já havia se revelado ao final do 1° turno das eleições e, infelizmente, não se trata de nenhuma novidade. Eu mesmo pude sentir isso de uma forma dolorosa. Estava em Natal e a minha mulher e os meus dois filhos em Brasília. Logo que saiu o resultado, alguns vizinhos proferiram xingamentos de suas janelas e um deles chegou a gritar “morte aos nordestinos”. Liz, a minha filha de 7 anos, ficou bastante assustada e me pediu: “pai, volte logo”.
O preconceito, a indiferença, o racismo, a crueldade são elementos visíveis na nossa sociedade e não podemos mais escondê-los ou disfarçá-los. Todos eles, sem dúvida, misturados a uma grande dose de ignorância e (por que não dizer?) de burrice.
Burrice que foi revelada por um prefeito bolsonarista de Minas Gerais que bradou diante da vitória de Lula: “o Nordeste deveria ser separado do restante do Brasil!”. Ora, Lula venceu a eleição no seu estado. Por margem apertada, apenas 0,4% dos votos válidos e cerca de 50 mil votos, mas venceu. Revertendo uma vitória que Bolsonaro alcançou em 2018 em Minas Gerais por 1,7 milhão de votos contra Fernando Haddad. Talvez, se o prefeito preconceituoso fosse um leitor de Guimarães Rosa, pudesse entender mais o sentimento do sertão profundo e do seu povo.
Em São Paulo, onde Bolsonaro venceu, constatou-se também uma mudança no humor do eleitor. Não houve mais a lavada que ocorreu em 2018, quando a diferença em prol do então vencedor foi superior a 8 milhões de votos e a 35%. Lula perdeu no estado por cerca de 10% e 2,7 milhões dos votos. Na capital, Lula venceu bem por quase 500 mil votos de maioria, resultado bem diferente do de 2018, quando a capital paulista deu uma vitória a Bolsonaro superior a 1 milhão de votos. A “Pauliceia Desvairada”, 100 anos após o evento da Semana de Arte Moderna, deu um sinal que queria se desvencilhar do atual governo. Sopro de mudança.
No Rio Grande do Sul, ocorreu algo semelhante. A maioria de Bolsonaro no estado se estreitou em relação ao que as urnas apontaram em 2018 e Lula venceu na capital Porto Alegre por 7% e quase 60 mil votos, me fazendo lembrar de uma música de Kleiton e Kledir: “Deu pra ti/ Baixo astral/ Vou pra Porto Alegre/tchau…”. “O Tempo e o vento” se transformam.
Ou seja, apesar da imensa vantagem que Lula obteve no Nordeste, o que realmente garantiu a sua vitória foi o seu avanço nas outras regiões. Em 2018, Haddad obteve 69,7% dos votos válidos do Nordeste no 2° turno, o que não o impediu de ser derrotado. Agora, Lula obteve no Nordeste percentual praticamente semelhante, 69,3%. Em contrapartida, ele avançou no Sul de 31,7% para 38,2%; no Centro-Oeste de 33,5% para 39,8%; e no Sudeste, maior colégio eleitoral regional, avançou mais de 10%, de 33,5% para 45,7%.
Tudo isso, contudo, nos serve apenas como leitura do quadro político-eleitoral. Para entender melhor os movimentos do eleitorado, costuma-se dividi-lo por região, gênero, renda, raça, instrução ou religião. O voto de cada eleitor, rico ou pobre, jovem ou velho, homem ou mulher, cis ou trans, nordestino ou sudestino, branco, preto, pardo, indígena ou amarelo, vale o mesmo.
Somos todos brasileiros, incluindo aqueles que estão na frente dos quartéis pedindo golpe de estado. Afinal, somos um povo grandioso que abriga em si várias contradições, desigualdades e feridas mal curadas. Como compôs Caetano Veloso, em “Dom de iludir”, interpretada primorosamente pela voz eterna de Gal Costa: “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
Carlos Emerenciano é advogado e arquiteto