Donald Trump entrou em pânico. À sua frente, turvavam-lhe a visão as imagens do filme “Falcão Negro em Perigo”, o épico do diretor Riddley Scott (de 2001) que dramatiza o cerco a uma tropa de elite norte-americana (Rangers) num teatro de operações urbano, cercados por milicianos muçulmanos na cidade de Mogadício, na Somália (Chifre da África), em 1993.
Aquele desespero diante da tragédia e a incapacidade de uma resposta armada pronta e adequada foi o retrato de uma derrota militar e política que abalou o governo do então presidente Bill Clinton, em 1993. O atual presidente viu-se diante da mesma ameaça de humilhação. Então decidiu matar o comandante inimigo antes do ataque. Disparou os mísseis de seus drones na cabeça do general iraniano Qasem Soleimani.
Esta versão de um ataque maciço de surpresa pelos iranianos é mais plausível para especialistas militares. Embora diplomatas e analistas da mídia procurem outras causas, como política interna (eleições e impeachment) americana, o que, de fato, teria mobilizado o presidente de forma tão abrupta seria o perigo de um combate de vida ou morte pelas ruelas de Bagdá. Lembraria o Levante de Varsóvia em 1944. Era o jogo do perde-perde.
Infiltrando homens e armas
O quadro militar seria dramático. Há dias que as milícias do Kata’ib Hezbollah, tropa multinacional dispersa por todo Oriente Médio, e Asa’ib Ahl al-Haq (Liga dos Justos), esta uma força auxiliar da Guarda Quds, força de intervenção do Irã, tomavam posição na capital do Iraque, enquanto os Estados Unidos reduziam seus efetivos na cidade.
A cada dia o quadro estratégico mudava em favor dos iranianos. Os americanos estariam encurralados em seus quartéis, sem retirada.
Havia um acordo informal para dar uma saída honrosa: o Parlamento iraquiano votaria uma moção pedindo a retirada dos americanos do País. A resposta ianque seria acelerar a redução de suas forças, que já estão bem minguadas, cerca de 12 mil homens.
Neste domingo, o legislativo iraquiano suspendeu a “ajuda” americana. Mas ainda falta muito até chegar a uma expulsão.
Seja como for, seria um efeito de Guerra Fria, diplomática, sem brilho épico. Entretanto, o Irã decidiu o contrário: os Estados Unidos teriam de se retirar humilhados, com o rabo no meio das pernas. Num cerco formidável, com retirada cortada e sem possibilidade de receber reforços e nem de se valer de suas armas inteligentes e cruéis, tolhidos pelos limites num centro urbano, a única saída seria a rendição.
Para lutar, naqueles espaços exíguos, teriam de se pegar no braço a fio de baioneta. Isto seria demais. É bom lembrar que em Mogadício a força de Rangers do Exército perdeu apenas 19 mortos e 76 feridos, produzindo mais de 1.000 mortos entre os milicianos do general Mohammed Farah Aidid, mas a opinião pública norte-americana entendeu que foi uma derrota militar e culpou o presidente Clinton pelo revés. Imagine uma retirada como virtuais prisioneiros do Irã, logo do Irã…
Americanos não perdoam
Os norte-americanos são ressabiados de ataques de surpresa. Mas não deixam barato. Em 7 de dezembro de 1941 uma esquadra japonesa atacou e destruiu a maior base dos Estados Unidos no Pacifico Oriental, Pearl Harbor. O autor do plano e executor da batalha, o almirante Isamu Yamamoto pagou com a vida.
Em 18 de abril de 1943, uma esquadrilha de aviões Lookheed P-38, do Exército Americano, caiu como um enxame de abelhas sobre o aparelho em que o líder nipônico viajava, um bimotor Mitsubishi G4M, abatido implacavelmente, mesmo protegido por duas esquadrilhas de caças Zero A6M, que nada puderam fazer para proteger seu oficial general, que caiu em chamas sobre a ilha de Bugainville na Papua-Nova Guiné. O almirante era o alvo. Derrubaram o bombardeiro e fugiram. Algo parecido como que ocorreu em Bagdá com o general iraniano.
Ofensiva do Tet
A imagem do Falcão Negro é só para visualizar o tipo de combate que se esperaria nas ruas de Bagdá. O exemplo mais assustador, para os americanos, é da Ofensiva do Tet, em 1968, no Vietnã, quando enfrentaram um ataque de surpresa dentro de área urbana, levado a efeito por uma força poderosa combinada do Exército regular do Vietnã e de guerrilheiros do Vietcong. Este desastre foi o ponto de inflexão naquela guerra: dali para a frente os Estados Unidos passaram a serem vistos como perdedores, mesmo entre a opinião publica nacional.
O general iraniano estaria por desencadear uma operação nos mesmos moldes daquela batalha organizada e comandada pelo general norte-vietnamita Vö Nguyên Giáp iniciada nas festas do Ano Novo Lunar, em 30 de janeiro de 1968. Numa operação silenciosa, os asiáticos conseguiram estocar provisões, principalmente munições e armas, incluindo petrechos pesados, como metralhadoras, morteiros e canhões (de tiro sem recuo) dentro da cidade.
Construíram posições e infiltraram milhares de soldados do Exército do Povo do Vietnã (a força regular) e milicianos comunistas. Os ataques foram fulminantes. Só não tomaram a cidade de Saigon, capital do País, e Huê, cidade histórica, capital imperial, e dezenas de outras menores porque ali os Estados Unidos tinham uma força de 500 mil homens. Tiveram como reagir
No Iraque, os soldados americanos não chegam a 15 mil. Em compensação, o general Soleimani disporia de grande superioridade numérica, com tropas especiais, regulares, de alto adestramento reforçadas pelos guerrilheiros do Hezbollah, com experiência de combate contra o Estado Islâmico, além dos mujahedins, especialistas em guerra assimétrica, responsáveis pela maior parte dos atentados terroristas no Iraque, com milhares de vítimas, dentre as quais as norte-americanas citadas por Trump.
Seria de fato esse o plano de Soleimani? Abater os Estados Unidos?
A verdade é que ele estava em campanha para presidente da República Islâmica. Ficou conhecido como herói épico na Guerra Irã x Iraque, depois mergulhou na clandestinidade como comandante da guerra assimétrica, até emergir nos campos de batalha na guerra convencional contra o Estado Islâmico (ISIS), os arqui-inimigos dos xiitas e do próprio povo iraniano, de origem ariana, um antagonismo inconciliável naquela região de um racismo empedernido.
Sua popularidade bateu até a do grande aiatolá, uma espécie de cardeal primaz. General bonitão, audaz, vencedor, Soleimani lembraria o israelense Moshe Dayan, vencedor da guerra dos seis dias e que virou um it do jetset internacional.
Humilhar os Estados Unidos
Neste contexto, há algumas hipóteses. A primeira é a que descrevemos: Soleimani pretenderia dar um golpe de mão, humilhar os arqui-inimigos norte-americanos, obrigá-los a sair do país vergonhosamente cabisbaixos.
Normalmente, ele poderia esperar pela votação do parlamento iraquiano decretando a expulsão dos americanos. Isto, no entanto, se Washington aceitasse o decreto legislativo, deixaria a retirada comum fato puramente político. Diplomático.
Melhor seria que os “gringos” saíssem enxotados. Ele teria força militar para impor uma rendição dos arqui-inimigos. Chegaria de volta à Teerã como uma espécie de novo imperador Saladino (curdo), que derrotou os cruzados e mandou para casa nada menos que o imperador Barba Roxa, da Alemanha, em 1190. (Na verdade, Frederico morreu e está enterrado na Turquia).
Outra hipótese: ele poderia ter sido traído. A luta interna pelo poder no Irã é muito grande e diversificada. O país não é uma democracia no modelo ocidental, mas o poder do estado é decidido em eleições livres entre muçulmanos xiitas, que compõem a maioria absoluta do país com 80 milhões de habitantes.
Neste caso, sua cabeça tanto pode ter sido entregue por rivais numa bandeja para os sicários norte-americanos, abrindo caminho para outra liderança. É de desconfiar da rapidez com que o aiatolá Khamenei nomeou seu sucessor, o general Esmail Ghaani. Soleimani era o líder de uma linha dura militar que se opunha ao presidente Hassan Rohani, moderado moderador. Queriam o poder.
Por outro lado, há um certo ceticismo sobre a escalada militar, tanto de um lado como de outro. Os americanos já fizeram sua cartada, dizendo, inclusive, que agora a bola está no campo do Irã. Já na velha Pérsia, a opinião pública está temerosa com a possibilidade de uma guerra convencional, tendo de enfrentar os armamentos estratégicos dos Estados Unidos.
Aqueles mísseis inteligentes, as bombas de alto poder explosivo, seriam milhões de mortos nas cidades. Também os americanos sabem que o Irã é um país desenvolvido, bem equipado de armamentos e com capacidade para enfrentar uma guerra terrestre em condições muitas vezes superiores às do Exército do Iraque de Saddam Hussein. Muitas mortes.
O deixa-disso está se movimentando, não obstante as bravatas dos políticos com ameaças de vinganças. Não há clima, mesmo porque no Iraque a população detesta os persas como vizinhos, embora haja uma afinidade teórica de facção religiosa. Recentemente, no sul iraquiano, xiita, houve uma grande revolta popular contra os iranianos. Soleimani e seus jihadistas não são populares entre os árabes, e detestados pela população sunita do País.
Por fim, Trump fez pouco do Irã como inimigo guerreiro, dizendo que esse país jamais venceu uma guerra. Não é bem assim.
O presidente norte-americano referia-se às duas guerras médicas, há 2220 anos, entre gregos e medos, em que os persas foram derrotados. Na primeira delas, o rei Dario, O Grande, perdeu a batalha de Maratona, que legou ao mundo a célebre corrida de fundo das Olimpíadas.
Na segunda guerra, o rei Xerxes atacou os gregos no Desfiladeiros das Termópilas. Ali, combateram os famosos 300 de Esparta. Na verdade, eram 7.000 gregos de várias cidades, dos quais 300 espartanos, da tropa do rei Leônidas, comandante em chefe.
Foram totalmente destruídos e os persas incendiaram Atenas, mas a história registra essa batalha desigual como vitória grega. Como em Mogadício ou no Tet de Saigon, onde os americanos venceram as batalhas armadas, mas perderam a guerras da comunicação, em que os derrotados cantam vitória. Será mais uma vez assim?