Porta dos Fundos, Alvim e Glenn: liberdade de expressão e de imprensa

Sede do Ministério Público - Foto Orlando Brito

As discussões acerca das liberdades de expressão e de imprensa dominam o debate público desde dezembro, com a polêmica sobre o especial de natal do Porta dos Fundos e ganharam força ontem, com a denúncia do Ministério Público Federal contra o jornalista Glenn Greenwald. Embora o tema seja bastante discutido, é preciso revisitar a jurisprudência e compreender o que temos de entendimento pacífico sobre a questão.

Para iniciar esse debate, é preciso entender que o Direito dá pesos diferentes às regras e aos princípios constitucionais e legais. As liberdades de expressão e de imprensa, por exemplo, são consideradas preceitos fundamentais superiores aos demais. “A liberdade de expressão é uma liberdade preferencial dentro de um Estado Democrático de Direito”, defendeu o ministro Luís Roberto Barroso na ADPF 548.

Ministro Luís Roberto Barroso – Foto Orlando Brito

Para o ministro aposentado Carlos Ayres Britto, a liberdade de imprensa é ainda superior. “Visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados”, afirmou em voto na histórica ADPF 130.

 

Porta dos Fundos

Dito isto, vamos aos casos concretos. O Porta dos Fundos abusou da liberdade de expressão ao retratar Cristo como homossexual? Primeiro, é preciso entender onde está a ofensa nesse caso. Mas, de qualquer forma, ainda que houvesse um insulto a uma religião, o especial está protegido por essa norma e qualquer tipo de censura prévia ou posterior, poderia configurar violação da Constituição Federal.

Cena da polêmica peça do Porta dos Fundos – Divulgação Netflix

“De se anotar que a liberdade de expressão, exposição, divulgação do pensamento põe-se em norma jurídica como dever estatal, conquanto voltando-se a proibição expressa de sua restrição ao exercício estatal (censura legislativa, censura administrativa, censura judicial)”, afirmou a ministra Cármen Lúcia na ADI 4815.

“Censura é repressão e opressão. Restringe a informação, limita o acesso ao conhecimento, obstrui o livre expressar o pensado e o sentido. Democracia deveria escrever censura com s em seu início: semsura…”, pontuou Cármen no mesmo voto.

Nazismo

Outra discussão que recentemente tomou conta do debate público foi a do alcance da liberdade de expressão. Isso aconteceu após um discurso em vídeo do então secretário de Cultura, Roberto Alvim, claramente inspirado no ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels. Alguns defenderam que não cabia responsabilização ao secretário. Alvim foi demitido do cargo pelo presidente Bolsonaro, após a repercussão negativa do episódio.

O vídeo de Roberto ALvim

Nesse caso, é importante lembrar que, embora a liberdade de expressão seja um preceito fundamental de gigante relevância e força em um Estado de Direito, ela não é absoluta. A liberdade de expressão não protege discursos racistas, homofóbicos e de incitação ao nazismo.

“Tão grave é o perigo social do racismo que é nítida a prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica em detrimento de qualquer argumento em defesa da livre manifestação do pensamento”, apontou a Desembargadora Federal Cláudia Cristina Cristofani em um acórdão de 2018, citando a jurisprudência do STF.

Importante ressaltar que no caso não está a se falar aqui sobre censura, que é vedada expressamente pela Constituição, e sim acerca da responsabilização penal.

Glenn

Como já citado, nenhum direito fundamental é absoluto, mas a liberdade de imprensa é, na ponderação de valores, difícil de ser superada. A jurisprudência do STF é pacífica no sentido de que as restrições à esse trabalho só podem acontecer em casos extremamente excepcionais.

“Os jornalistas, em tema de sigilo da fonte, não se expõem ao poder de indagação do Estado ou de seus agentes e não podem sofrer, em função do exercício dessa legítima prerrogativa constitucional, a imposição de qualquer sanção penal, civil ou administrativa”, afirmou o ministro Celso de Mello no Inquérito 870.

Ministro Celso de Mello – Foto Orlando Brito

A jurisprudência internacional também caminha nesse sentido. No caso New York Times Co. v. United States, de 1971, onde o governo americano tentava impedir o Times e o Washington Post de divulgar documentos secretos do Pentágono, a Suprema Corte dos EUA reconheceu que a liberdade de imprensa protegia os jornalistas. “Somente uma imprensa livre e sem restrições pode efetivamente expor os atos equivocados dos membros do Estado”, afirmou à época o juiz Hugo Black.

Diante dessa jurisprudência e do raso e inconsistente material probatório constante na denúncia do Ministério Público Federal contra o jornalista Glenn, é necessário ressaltar que a medida é evidentemente inconstitucional e parece ter sido escrita a fim de constranger publicamente o profissional.

Glenn Greenwald – Foto Orlando Brito

A liberdade de imprensa não é absoluta, repito, e não livra jornalistas de responderem por um crime, se cometerem. Mas, segundo a jurisprudência, o preceito fundamental só perderia seu peso nesse caso se Glenn tivesse comprado o material, ajudado na invasão, chantageado o hacker ou roubado o material. A denúncia, nem de perto, consegue levantar indícios mínimos de qualquer uma dessas práticas.

Por isso, a peça do procurador Wellington Marques de Oliveira representa uma mácula na atuação do Ministério Público, que tem como função a fiscalização da Constituição Federal. Ela claramente proíbe qualquer constrangimento à atuação da imprensa. “Ou ela [imprensa] é inteiramente livre, ou dela já não se pode cogitar senão como jogo de aparência jurídica”, lembrou o ministro Ayres Britto na ADPF 130.

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