Numa interessante análise publicada há poucos dias no Poder 360, Leonardo Cavalcanti avalia a possibilidade de o clã Bolsonaro se valer do que o professor de Antropologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Piero Leirner, chama de “estratégia militar dissonante”. De acordo com Leirner, trata-se da replicação de uma tática de guerra, na qual informações desencontradas são repassadas de modo a criar uma estratégia de confusão, que desorienta o inimigo.
Passa-se uma ideia de descontrole. De que não há unidade de pensamento. Uma coisa é dita. Outra é contradita. Desautorizada. Daí, recua-se do que foi dito. Até a criação da próxima controvérsia. Na estratégia, segundo avalia Leirner, o presidente Jair Bolsonaro acaba aparecendo como o elemento moderador. A tática gera mobilização dentro do governo e entre a militância mais próxima do presidente. E mantém acesa a polarização com a esquerda, o interminável Fla x Flu que tem sido o nosso pesadelo.
O morde-assopra ficou claro em dois momentos recentes. Primeiro, no vídeo do Rei Leão e das hienas. No vídeo, Bolsonaro aparece como o leão e as hienas são todas as demais instituições republicanas brasileiras: Judiciário, Legislativo, imprensa… Tratava-se de uma clara demonstração de guerra. De ruptura institucional. O que Bolsonaro pretendia com aquilo? Então, diante da repercussão negativa, ele declara que o vídeo foi um erro, retira o vídeo do ar e pede desculpas.
Então, alguns dias depois, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ) critica a radicalização dos movimentos de protesto no Chile e diz que o governo deve se preparar para reagir caso algo semelhante se esboce ocorrer por aqui. Diz que o governo precisa ter instrumentos para essa reação. E fala numa possível volta do AI-5, um instrumento da ditadura que dava poderes fora da Constituição ao governo para fechar o Congresso, cassar pessoas, censurar a imprensa. Diante do evidente repúdio geral a tal absurdo, Bolsonaro desautoriza Eduardo. Que pede desculpas e recua.
Não tivesse sido, porém, por um modo patético, eis que depois o próprio Eduardo Bolsonaro volta ao tema novamente não para explicar, mas para confundir. Diz em outro vídeo que o que ele tinha querido dizer não era uma pregação da volta do AI-5, mas a necessidade de o governo ter instrumentos para agir de forma “energética” em caso de radicalização. O vídeo, felizmente, repercutiu pelo ridículo do uso errado do termo “energético”. O que pretendia Eduardo era transformar os protestos numa rave e distribuir Red Bull pra moçada?
Ou, levando a fala a sério: o que são instrumentos “energéticos”? Porque, se de fato houvesse uma radicalização de protestos fora dos preceitos da lei, que extrapolassem o direito de manifestação, a Constituição e as leis brasileiras possuem instrumentos enérgicos – este é o termo correto – para coibir. Se os “energéticos” estão fora do limite legal e constitucional e denotam autorização para ações autoritárias, a democracia brasileira deve rechaçá-los.
Se há algo de pensado nesse morde-assopra, se é a adoção de uma tática diversionista de inspiração militar, é preciso dizer que tudo isso sai completamente dos manuais conhecidos de administração de um governo. Se der certo, vai obrigar uma profunda revisão de conceitos.
É interessante para quem disputa uma eleição – sobretudo se não está no governo – criar em torno do pleito um ambiente de confusão e desorientação. Especialmente se for capaz de fazer com que o caminho da solução ao final passe por ele. Nesse sentido, a tática de Bolsonaro para manter a polarização acesa durante o pleito do ano passado foi um sucesso absoluto. Mas governos precisam de tranquilidade. Precisam de um mínimo de estabilidade para ver avançarem seus projetos.
A essa altura, Bolsonaro briga com seu partido, briga com outros partidos conservadores do Congresso, não consegue formar uma base, joga suas fichas na formação de um novo partido quando ele precisa de votos agora, não no futuro. Briga com o Judiciário. Briga com a imprensa. Briga com os setores mais organizados da sociedade civil de perfil mais conservador, como o Movimento Brasil Livre (MBL). Qual a garantia de tranquilidade mínima que isso lhe traz para a aprovação dos seus projetos?
Se há por trás de tudo isso uma intenção não democrática, golpista, como se preocupam alguns, de que forma Bolsonaro encontrará respaldo para tal aventura se dispensa as instituições? Em 1964, militares não tomaram o poder sozinhos. Precisaram – e tiveram – o apoio de instituições como boa parte do Legislativo, do Judiciário, da imprensa, da sociedade civil.
Há, por último, uma outra avaliação que devem fazer os que defendem soluções mais conservadoras, de direita, para o país. Ao vencer as eleições, Bolsonaro deu a esse gupo mais conservador a chance de propor seu modelo pela via democrática. Alternância de poder, como se espera que ocorra em qualquer democracia madura. Dez meses depois da posse, o esboço de qualquer sugestão autoritária e não democrática seria a admissão de que, no Brasil, tal grupo conservador não consegue manter seu modelo pela via institucional. Seria uma admissão de fracasso, do ponto de vista democrático.
De 1954 a 1960, o grupo conservador viu esbarrar as suas chances na moderação que era feita pelo PSD. O partido, como bem explicou Lucia Hippolito no seu “PSD: de Raposas e Reformistas”, evitava os extremismos. A lógica se rompeu com Jânio Quadros. E não deu certo, pela via democrática, após a sua renúncia. O golpe jogou às favas a tentativa de sucesso pelo caminho democrático. A direita brasileira pagou seu preço. Afastou-se do debate até conseguir emergir de novo com a construção da eleição de Bolsonaro. Já vai admitir de novo a impossibilidade de sucesso de suas ideias pelo debate democrático? Vai de novo fazer descer goela abaixo por vias autoritárias? É o que propõe o clã Bolsonaro antes de pedir desculpas? Ou tudo não passa de um mal entendido? Ainda que seja um planejado e estratégico mal entendido…