Filigrana é uma palavra que expressa diversos conceitos em diferentes contextos. Alguns bem objetivos. Na ourivesaria, por exemplo, é uma técnica para entrelaçar fios de ouro ou de prata, delicadamente soldados. Nas artes gráficas, é uma trama de filetes de cobre, formando letras ou desenhos, que aparecem na espessura de uma folha, tipo marca d`água em documentos e cédulas de dinheiro. Mas as chamadas filigranas jurídicas abrem um leque bem maior.
Em tese, são pequenos detalhes de uma lei, que muitas vezes passam despercebidos ou são ignorados em julgamentos, mas podem reverter decisões ou até modificar totalmente sentenças judiciais. Sua percepção pode fazer a diferença na qualidade do trabalho de advogados. Mas o excesso de detalhes nas leis brasileiras abre todo o tipo de brecha para contestações. Algumas por malandragens de legisladores nos acordos no parlamento para que sejam aprovadas. Outras por suas mais variadas interpretações.
No mundo jurídico, muitas vezes parece valer mais a direção dos ventos.
No julgamento do Mensalão, o primeiro grande caso de corrupção envolvendo parte da elite política e empresários do segundo andar, uma sólida maioria entre ministros do STF em apoio ao relatório de Joaquim Barbosa brecou as investidas dos advogados de defesa em brechas e filigranas de todos os tipos. Foi essa inédita jurisprudência que abriu o caminho para a Operação Lava Jato desvendar o maior esquema de corrução da história, que chegou ao andar da cima.
O que o Supremo põe também pode dispor. Parecia ter acabado com a inacabável possibilidade de recursos que tornava a impunidade dos poderosos no Brasil praticamente infinita. Esse fogo no parquinho durou pouco. Voltou a valer a interpretação de que a execução penal só vale depois do último dos últimos intermináveis recursos do arsenal dos bons e caros advogados de defesa. Gilmar Mendes mudou de lado e ressuscitou a jabuticaba.
Mas isso foi apenas o primeiro capítulo de uma longa novela para reverter inquéritos, acusações, confissões e alguns julgamentos, ratificados em várias instâncias, sobre bilhões afanados dos cofres públicos. O juiz Sérgio Moro foi considerado parcial, os julgamentos anulados, mas ninguém foi declarado inocente. O que, convenhamos, seria inusitado diante da fortuna devolvida por larápios a partir das investigações da Lava Jato e de outras operações Brasil afora.
Mas o que o STF tratou como um caso particular ( a suspeição de Moro nos julgamentos de Lula) parece ter sido entendida por juízes das mais variadas instâncias como um liberou geral, inclusive em inquéritos e processos que nada têm a ver com a Lava Jato. Virou um efeito dominó. Notórios corruptos como Eduardo Cunha, Antonio Palocci e muitos outros, de todos os naipes, já compraram ternos novos e voltaram à ribalta. Sérgio Cabral começa a trilhar o caminho de volta.
Augusto Aras, procurador-geral da República, entrou na onda. Nas investigações que comprometem Jair Bolsonaro, como as pedidas pela CPI da Covid, recorre às mais variadas filigranas para driblar as exigências de ministros do STF, como Alexandre de Moraes, e não abrir formalmente inquéritos contra o presidente da República. Mesmo depois de ter levado puxões orelhas de Rosa Weber e outros ministros, ele segue na mesma toada.
Todo esse concerto soou como música no Congresso. Se o cumprimento de decisões de ministros do Supremo são passíveis de interpretações, a cúpula parlamentar se sente à vontade para nadar de braçada. A bilionária boiada do orçamento secreto no Orçamento da União de 2022, grande trunfo eleitoral, puxa a fila.
A conferir.