O livro mais esperado do ano chegou. “Escravidão”, de Laurentino Gomes, está nas livrarias de todo o Brasil.
Primeiro volume de uma obra em três tomos, inicia sua carreira de best seller com o subtítulo sugestivo e atraente: “Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morre de Zumbi dos Palmares”. Com isto o consagrado autor abre o apetite de todos quantos aguardavam sua nova incursão com uma narrativa empolgante sobre a História do Brasil.
Pilar básico das políticas identitárias adotadas pelo setor público brasileiro, centro de um dos temas mais polêmicos do momento, a escravização de povos africanos no Brasil (e nas Américas) ganha uma primeira obra de grande alcance, oferecida ao público interessado. Laurentino apresenta-se como um jornalista, deixando claro que não é historiador de carreira.
Justamente por este fato, de não se apresentar como um livro situado dentro de uma das correntes identificadas como científicas, tem pique jornalístico, o que os historiadores qualificam como deformação. Os acontecimentos são vistos pelos dois lados de cada versão da ciência histórica.
“Escravidão” apresenta-se ao mercado como uma grande reportagem. No seu relato, o autor visita toda a historiografia disponível no Brasil e no Exterior, entrevista fontes e pesquisa documentos com objetivo apenas de expor os fatos.
Os dois lados da questão, para não dizer da história, pois já de início esclarece que é um tema polêmico, contaminado por visões ideológicas de correntes políticas ou de pensamento. Buscando isenção, ele dá voz a todas as tendências.
Não espere, entretanto, o leitor, encontrar um livro superficial, como seria de se esperar de um jornalista. Ao contrário, Laurentino produz uma obra profunda, capaz de abrir os ouvidos de qualquer leitor acostumado aos discursos que estão em voga nas salas de aula, salões e mesas de bares, pelo país a fora.
Como bom repórter, ele foi às fontes. Ao acompanhá-lo, o leitor vai às profundezas das muitas Áfricas que mandaram seus filhos para o Brasil. “Mandaram” é a expressão correta, pois embora os pacientes chegassem ao País contra suas vontades, eram enviados por seus governantes, líderes de nações definidas e organizadas em estados bem evoluídos.
Ao contrário da narrativa que supõe uma caça indiscriminada pelos europeus de homens e mulheres livres como se fossem animais levados a um rodeio, o negócio da compra e venda de escravos era um setor muito bem organizado em todas suas fases, da captura à venda nos destinos.
A escravização dos escravizados, como ele prefere falar, em vez da palavra “escravo”, nas nações africanas dos séculos passados, era um processo econômico milenar, que, até a chegada dos europeus, funcionava como um mercado interno na própria África, muçulmana ou não, como também no Oriente Médio. Os europeus já encontraram uma estrutura montada e operando, muito bem estabelecida, com suas rotas, mercados e demais elementos de uma atividade de comercio internacional.
A entrada dos europeus, a partir dos descobrimentos, apenas aumentou a demanda exponencialmente, sofisticando e desenvolvendo o negócio e, assim, criar a maior diáspora da história, tanto por número de pessoas envolvidas, como a duração no tempo. O tráfico durou quatro séculos, envolvendo 12 milhões de pessoas.
Este número poderá ser exagerado. Contam-se os sobreviventes, de doenças acidentes ou violência, dos quais, segundo Laurentino, 4,6 milhões teriam vindo para o Brasil, considerado o maior consumidor dessa mão de obra, pois unia demanda da produção (especialmente das minas e plantations), serviços domésticos, vendedores do comércio e profissionais das áreas de serviços.
Quando atingiu seu pleno desenvolvimento, o tráfico negreiro converteu-se no comércio principal do Atlântico, superando em volume, valor e intensidade de trânsito naval, a todos os demais produtos, como minérios, açúcar, algodão, milho e outras commodities.
É verdade que naquele tempo, antes de a revolução industrial e de os navios a vapor pontilharem os mares, levando para o mundo inteiro as mercadorias das fábricas europeias, pouco mais havia além desses produtos agrícolas para alimentar o comércio internacional. Neste ponto, o tráfico ocupou lugar de destaque como principal atividade de comércio internacional e de construção naval civil, além de, evidentemente, trabalho para marinheiros e trabalhadores na logística do segmento.
Hoje, o Brasil e Portugal aparecem como os grandes traficantes. Entretanto, todas as grandes potências ocidentais da época estavam envolvidas no negócio de carne humana.
Mais do que isto. Compra e venda de cativos era a principal atividade geradora de caixa para os sistemas bancários desses países; também, depois, foi a primeira e mais poderosa fonte de financiamento para os investimentos na infraestrutura e na criação da indústria de bens de consumo nos países do Canal da Mancha, que converteu a Europa (e seu entorno, como Japão) no que o chamado Primeiro Mundo é hoje.
Laurentino não precisa se aprofundar nem invocar documentação secreta para demonstrar que o Brasil não é o grande vilão. Talvez até seja uma vítima tão abalada pelos efeitos maléficos dessa aberração humana quanto os países produtores de escravos, pois sendo o maior mercado, ficou com as mazelas desse negócio escabroso.
Por outro lado, positivamente, é o maior herdeiro do legado africano fora do Continente Negro. Isto, no entanto, é outra coisa, a que o livro ainda não chegou. Deve ser desenvolvido nos dois volumes que o autor promete para os próximos dois anos.
O primeiro volume dessa obra oferece ao leitor leigo uma base para introdução ao tema do escravismo. Sem atacar diretamente esta ou aquela corrente historicista, deixa claro que o autor não se filia à corrente dos anacrônicos, que é a denominação técnica para os revisionistas da história, tão em moda no Brasil. Por isto, insiste que é um jornalista dos tempos passados, tal qual foram, não como se apresentam as versões correntes, com uma narrativa politicamente correta alinhada com as ideologias de nossos tempos.
Esse livro está fadado a causar um grande reboliço no panorama literário do Brasil, como foram as obras anteriores de Laurentino, os três livros sobre a construção política do Brasil moderno, os clássicos “1808”, “1822” e “1889”.
Ali o autor surpreendeu e encantou seus leitores ao mostrar um país bem diferente dessa versão caricata que, não obstante, ainda é hoje predominante em vários segmentos da academia e que constitui a imagem mais corrente entre a classe média urbana dita letrada. O sucesso de vendas desses livros (a trilogia dos oitocentos), quase três milhões de exemplares, demonstra a fome de informação correta sobre História do País.
O autor sugere que a versão dos historiadores revisionistas não coincide com o país real. Entretanto, uma visão mais realista da verdadeira trajetória do Brasil e das pessoas que construíram o país ao longo dos séculos é considerada como uma adesão à visão reducionista e politicamente incorreta, derivada do ufanismo dos tempos da ditadura militar.
Esta politização da história está sendo demolida pelos jornalistas-historiadores, como Laurentino, um grupo de autores onde se inscrevem outros nomes, quase todos escritores de best sellers, como este que acaba de chegar às livrarias.
A história oficial de hoje é a antiga história alternativa dos anos 1970, que pretendia reduzir a pó toda a construção do Brasil.
Na verdade, o livro é o trabalho de um jornalista que “entrevista” personagens e procura situá-los no seu tempo, nas condições efetivas em que viveram. O texto final também é simples, respondendo às perguntas básicas que qualquer foca aprende quando entra numa redação de jornal como aprendiz. O jornalista deve chegar na editoria com a resposta para as cinco perguntas essenciais: “quem, o que, quando, como, por que”. O resto é fantasia de mentes borbulhantes.
Muito bem-vindo ao “Escravidão”. Este primeiro volume é uma promessa, pois neste tomo vê-se que o autor está preparando seus leitores para o que vem por aí.
Certamente com seu livro vai sacudir alicerces. No final deste volume, ele dá uma provinha de que não se submete a estereótipos, quando diz, nas últimas páginas, que o Quilombo de Palmares não era um movimento abolicionista e questiona a lenda de Zumbi, um personagem controverso pelas construções que se fizeram de sua biografia.
Ninguém perde por esperar. Laurentino está mexendo numa casa de marimbondos.