Não resta a menor dúvida de que a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, é polêmica. Mas não resta a menor dúvida também de que ela é o que o presidente Jair Bolsonaro chama de “terrivelmente evangélica”. Está totalmente identificada com o discurso conservador, especialmente nos costumes, que hoje ocupa o poder no país. E Damares é também a responsável por atacar os graves problemas sociais que ainda estão bem longe de resolvidos no Brasil. A combinação desses dois fatores faz com que, hoje, Damares esteja escalada pelos estrategistas políticos do governo para um importante papel: ser a cabeça de ponte a estourar o dique de votos e popularidade que o principal adversário do bolsonarismo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu PT, mantém nas regiões Norte e Nordeste. Não estranhe a linguagem militar, pois é esse o jargão usado principalmente pelos estrategistas do governo.
O raciocínio em torno de Damares vem da própria evolução de como Lula conquistou o seu cacife na parte norte do país. Na sua primeira eleição, em 2002, a maior parte dos votos do ex-presidente petista viera das regiões Sul e Sudeste. Foi somente na sequência do seu governo, na sua reeleição e nas duas eleições de Dilma Rousseff, que o cenário se inverteu e a principal reserva de votos petistas passou a vir do Norte e do Nordeste. Para os estrategistas do governo, isso não foi exatamente o resultado de uma guinada político-ideológica à esquerda vinda dos eleitores dessa região. Foi consequência da ampliação do Bolsa Família e do sucesso das políticas sociais dos governos do PT.
Resultado, portanto, da profunda carência social da população mais pobre dessas regiões. É claro que promover igualdade social está mais próximo do discurso da esquerda. Mas isso acontece na clássica visão mais econômica da divisão esquerda/direita. E o grande embate ideológico hoje no país está mais voltado à questão de costumes. Os conceitos que hoje a direita mais usa – como “ideologia de gênero” – estão mais voltados a uma ideia de que há uma indústria cultural de esquerda no mundo que quer minar os valores tradicionais ligados à família. E, nesse sentido, até Hollywood para boa parte dessas pessoas seria hoje de esquerda.
O grande paradoxo dessa história toda é que a maior parte da população diretamente beneficiada pelos programas sociais implementados pelo PT é conservadora nos costumes. Boa parte tornou-se, como Damares, “terrivelmente evangélica”. E, mesmo que não professe a mesma crença, não pensa de modo muito diferente. É aí que se une a conformação capaz de fazer da ministra dos Direitos Humanos a ferramenta para tentar minar o dique de Lula.
Desde o ano passado, Damares tem priorizado na sua agenda visitas ao Norte e ao Nordeste. Mais do que isso, começou a implantar laboratórios para ações mais efetivas na região. O mais avançado deles está sendo implementado na Ilha de Marajó, no Pará. A grande ilha fluvial tem um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, ainda que possua a maior criação de búfalos do continente e tenha imenso potencial turístico. Há ali um sério problema que bate com as preocupações de Damares: uma incidência muito grande de casos de abuso sexual de crianças, especialmente dentro das famílias. Não é à toa a criação ali do mito do Boto, que tem muito a ver com isso.
O ministério de Damares está implementando ali um programa chamado Abrace o Marajó. Ela está liderando uma ação que envolve oito ministérios para levar investimentos e direitos sociais à ilha. Recursos do BNDES e da iniciativa privada – inclusive a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) – estão sendo movidos para construir um grande resort e levar turismo à região. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep) doou um barco batizado de Navio dos Direitos, que viaja pelo rio dando orientações, fazendo documentos, cadastro para o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e contendo uma Casa da Mulher Brasileira fluvial.
A partir dos resultados obtidos na Ilha de Marajó, a ideia é fazer outros laboratórios semelhantes em cidades do Norte e Nordeste, como Fortaleza e Aracaju e municípios menores.
Damares está em contato com candidatos a prefeito que tenham identificação com seus projetos para ajudá-los nas eleições municipais e trazê-los para o projeto de reeleição de Jair Bolsonaro em 2022. Ainda que o presidente esteja hoje sem partido, pensa-se que esse pode ser um caminho para pavimentar a tentativa de segundo mandato.
Se a ministra for capaz de unir uma efetiva ação social a um discurso mais conservador que, na verdade, hoje parece mais próximo da forma de pensar de quem precisa dessa ação, avalia o governo que poderá trazer grandes danos ao dique de Lula no Norte e no Nordeste.