A carta do general Augusto Heleno ainda não foi bem entendida pelos analistas e nem processada pelos políticos. Daí tanto espanto. Na verdade, o que precisa ser analisado é o que há por baixo, por cima, pelos lados. O que apressadamente alguns observadores apresentam como um fato em si é apenas um recado de amplo aspecto, para ser desfolhada de uma a uma.
A carta do general teve como objetivo mandar recados (não ordens) para todos os segmentos envolvidos na presente crise, inclusive para o estamento militar do funcionalismo público que, brevemente, enfrentará tentações de críticas corporativas devido ao congelamento de salários e corte de investimentos. Ainda nesse segmento, há um recado político: tendo mostrado o texto ao ministro da Defesa, general de exército Fernando Azevedo e Silva, o autor mostra que trouxe uma palavra articulada com o setor verde-oliva do governo, mas não é um ato de governo em si. Ou seja: como manobra tática, eventualmente o peso da repercussão poderá ficar restrito à pessoa do general Heleno, arcando com possíveis consequências, deixando a instituição militar e o próprio ministério fora do alcance de retaliações.
Como se sabe, já há movimentos para chamá-lo a depor na Câmara, procurando, com isto, embaraçar o governo, lançar suspeitas de golpismos para desacreditar o presidente da República e sua intersecção militar. Tudo certo: a oposição está no seu papel.
Cascas de banana
Uma segunda observação é sobre a oportunidade da carta, publicada horas antes da divulgação da íntegra do vídeo da reunião ministerial. Uma teoria é que o próprio presidente não tinha segurança sobre o conteúdo do material enviado ao ministro Celso de Mello. Alguma filigrana poderia ter escapado, vindo a causar problemas, pois o perigo efetivo do material estava nas cascas de bananas que o próprio presidente jogara no assoalho da sala de reuniões. Era necessária uma ”vacina”, como se diz na linguagem política. Heleno aplicou.
De fato, mais do que o olhar fortuito do presidente na direção de seu ombro esquerdo, apontado como prova criminal irrefutável, o que mais chamava atenção nos momentos de alguns pronunciamentos era a indisfarçável troça do general Hamilton Mourão, vice-presidente da República. Os ministros ideológicos, marinheiros de primeira viagem, foram enfáticos: Paulo Guedes, da Economia, Abraham Weintraub, da Educacação, Damares Alves, da Família, e Ricardo Salles, do Meio Ambiente, deram munição para os críticos. Já as alas militar e técnica, mantiveram a compostura.
Os limites do Judiciário
Nos bastidores, tanto no governo como na oposição, os analistas lúcidos estão a especular quais foram os motivos profundos da divulgação da íntegra do vídeo, extrapolando o objetivo jurídico da prova. Há sérios questionamentos sobre a legalidade da divulgação, pois o material fora classificado, isto é, carimbado como “secreto” pelo Poder Executivo. Deveria ser limitado como segredo de justiça, dizem. Assim, ao ignorar essa prerrogativa, o ministro Celso de Mello estaria ultrapassando os limites do Poder Judiciário. Ou seja: o vídeo não pode ser usado como prova na torrente de processos que estão sendo anunciados para enquadrar os excessos de linguagem dos ministros ideológicos.
Há dúvidas sobre as motivações profundas dos dois contendores, os ministros general Heleno e Celso de Mello. Cada qual teria seus motivos para fazer o que fez.
Celso de Mello saberia dos fatos que sua atitude provocaria. Isto é mais ou menos pacífico. Seus admiradores dizem que ele, vendo que o conteúdo do vídeo não levaria a nada, judicialmente falando, decidiu escancarar o ambiente da reunião ministerial, como uma forma de chamar atenção do ministério para observar a solenidade de um encontro do primeiro escalão do governo num palácio presidencial, ou seja, no coração do Poder Executivo. Era o Judiciário dando um puxão de orelhas nos governantes.
Os adversários dizem que o ministro decidiu liberar o vídeo na íntegra quando percebeu que as partes relativas ao processo seriam inócuas. No final de seu mandato, às portas da aposentadoria, seria um último alento, no apagar das luzes (dos holofotes?). Então, botou para quebrar, liberou o material inteiro e seja o que Deus quiser.
O tiro do general
O general Heleno assumiu a função de servir como boi de piranha na crise iminente, uma manobra diversionista, como se diz em linguagem militar. Soltando aquela carta ameaçadora, atrairia para si o fogo que estava destinado ao presidente Jair Bolsonaro. Aparentemente, ao saber que o vídeo seria liberado na íntegra, o general decidiu se antecipar, criando uma polêmica maior, para amenizar o efeito do palavrório de seus colegas metendo os pés pelas mãos. No frigir dos ovos, sobrou para o chefe do Executivo apenas a parte teatral do acontecimento. Com isto, a artilharia pesada recaiu sobre ele. Missão cumprida.
No final do dia, passando e repassando o vídeo, sobrou para os analistas ficarem a ciscar uma palavrinha aqui, um olhar ali, para incriminar o presidente, enquanto Heleno era chamado às falas para explicar se estava ou não dando um golpe de estado. Entretanto, os motores dos blindados permaneceram desligados e os tanquistas de quarentena como tantos pacíficos cidadãos civis. Não foi tiro n’água. Tempestade em copo d’água.
Desculpas esfarrapadas
O que parece é que foi uma crise para inglês ver. O ministro do STF, Celso de Mello, encaminhou suas provas ao Procurador-Geral da República, Augusto Aras, com a desculpa esfarrapada de que cumpria um ritual processualístico, quando o que estaria pretendendo era expor o ministério à execração pública por causa de seus maus modos, botando batata quente no colo do PGR que, também, afinal, foi quem jogou esta questão na rua.
Da mesma forma, o general Heleno diz que não fazia ameaças diretas nem ao Supremo nem ao regime democrático, mas apenas advertia que Celso poderia estar pisando na bola. Enquanto os analistas se desdobram para explicar os fatos, o governo entra em quarentena: o presidente da República anunciou que doravante não haverá mais reuniões ministeriais. Conversa com ministros, só tête-à-tête, sem testemunhas ou gravadores, celulares fora. E seus ministros que passaram do ponto que expliquem.