Não é a primeira vez que o Brasil vê sua imagem pisoteada e aparece no cenário internacional como o vilão do mundo. Desde o descobrimento que o País vem passando por isso, ao longo dos séculos. Pior do que esta crise dos incêndios amazônicos, ocorreu a partir do fim da guerra civil norte-americana, na segunda metade do século XIX , com a pecha de país escravista. Porém, o chefe de estado da época, Dom Pedro II, encarou a onça no olho e foi pessoalmente à Europa defender a reputação de seu trono. Teve grande êxito. Qual foi a tática do imperador para vencer intelectuais, a mídia e grandes interesses econômicos e geopolíticos que se moviam naqueles momentos? O presidente Jair Bolsonaro e seu governo poderiam se espelhar no exemplo do monarca.
O trabalho de D. Pedro II para neutralizar a campanha antibrasileira está magnificamente relatada no livro “A História do Brasil nas Ruas de Paris”, de Maurício Torres Assumpção, historiador, jornalista e documentarista de tevê, editado pela Casa da Palavra. O autor não liga diretamente as viagens do rei brasileiro à questão da imagem, mas narra em detalhes as ações do monarca para construir uma reputação refinada, e como tecendo ponto a ponto, foi ligando o Brasil ao que havia de mais moderno e construtivo na Europa daqueles tempos. Ou seja: D. Pedro não bateu de frente contra os detratores, nem denunciou interesses suspeitos a conspirar contra a economia do País. Ele formou novas alianças capazes de superar as críticas que, na verdade, eram procedentes, embora exageradas, no entender dos brasileiros.
Ao conseguir dissociar sua pessoa, seu trono e sua ação política do escravismo renitente, ele conseguiu separar-se dos segmentos mais reacionários do País, que vinham barrando, no Legislativo, as propostas abolicionistas que tramitavam e perdiam em votações na Câmara e Senado. Isto se comprova na mensagem que o escritor Victor Hugo, aos 81 anos, entrega ao ativista José do Patrocínio, que estava na Europa pedindo apoio, tal qual os ambientalistas de hoje, à causa abolicionista no Brasil. “Enfant terrible” das monarquias absolutistas, feroz republicano, inimigo dos reis, na época o intelectual mais respeitado da França, Victor Hugo escreveu e autorizou a divulgação, saudando a abolição da escravatura no Ceará, em 25 de março de 1884: “Uma província no Brasil acaba de abolir a escravidão. A escravidão é o homem substituído no homem pela besta: o que restar de inteligência humana nesta vida animal do homem pertence ao mestre, consoante a sua vontade e o seu capricho. Daí nessas circunstâncias horríveis. O Brasil acaba de dar um golpe decisivo na escravatura. O Brasil tem um imperador, ele é mais do que um imperador, é um homem. Nós o felicitamos e nós o honramos. Antes do fim do século a escravidão terá desaparecido da face da terra”. Imagine-se o presidente Jair Bolsonaro recebendo um elogio desses do maior ícone da esquerda mundial em plena temporada de incêndios e queimadas.
Em 1870, terminada a Guerra do Paraguai, a imagem do Brasil no exterior era um verdadeiro desastre. A guerra civil dos Estados Unidos, embora tivesse muitas causas e disputas, fixou, na Europa, a imagem que até hoje predomina, de que fora um conflito em torno da libertação dos escravos. Esta marca colou em cheio sobre o Brasil. Embora a Tríplice Aliança fosse integrada por governos liberais, o segmento mais a esquerda da época (Zacarias de Gois, no Brasil; Bartolomeu Mitre, na Argentina; e Venâncio Flores, no Uruguai), o governo ditatorial Solano Lopez, precursor do que no século XX seria o totalitarismo , conseguiu neutralizar a diplomacia brasileira com a fama de império escravista. Na época parecia ter sido o Brasil a inventar a escravidão no mundo, tal qual hoje, que se atribui toda a crise climática planetária ao estado brasileiro, não obstante, no passado, em governos de tendências variadas, o País tenha produzido legislação e ações ambientais relevantes.
Dom Pedro percebeu o tamanho do problema e tomou a si a missão de combater as críticas, para polir a imagem do Brasil no mundo. Se não melhorasse totalmente, pelo menos poderia amenizar os efeitos negativos. Nessa época de grandes investimentos em infraestrutura no mundo, o Brasil não podia perder a corrida pelo desenvolvimento por causa da resistência de segmentos extremamente negativistas, mas poderosos. Era o caso dos grandes plantadores, proprietários de escravos e segmentos urbanos, como madames ou pessoas da classe média, que tinham em seus escravos de ganho ou domésticos suas fontes de renda ou serviçais caseiros. Numa população de 10 milhões de habitantes, haveria 800 mil cativos, grande parte deles propriedade dos governos nacional, provinciais ou municipais, os chamados escravos da nação. Estes, arrolados como patrimônio público, não podiam ser privatizados por um canetaço, diziam os políticos.
O imperador revelou-se um craque no marketing político, numa época em que isto engatinhava, com a substituição de monarquias por repúblicas e de sucessões dinásticas por eleições. Em vez de bater de frente com os detratores do Brasil, que esgrimiam argumentos difíceis de rebater, Dom Pedro aproximou-se dos intelectuais. Em pouco tempo conquistou corações e mentes, obscurecendo a mancha da escravidão que obnubilava seu trono e seu País. Não gastou dinheiro público com agências e propaganda nem comprou jornalistas ou jornais, como era o hábito da época (Solano Lopez distribuía grandes somas a jornalistas das capitais europeias, quando isto não era considerado nocivo à liberdade de imprensa).
Antes de partir, Dom Pedro obteve uma situação intermediária, a Lei do Ventre Livre, que era um caminho jurídico para a abolição, uma vez que somente as mães podiam gerar escravos legalmente. Assim mesmo, foi uma tarefa árdua, que demandou três viagens, com meses de duração e visitas a muitos países, inserção nas comunidades acadêmicas, científicas e culturais.
O Brasil tinha uma longa história de déficit de imagem. A começar por seu primeiro visitante, o geógrafo Américo Vespúcio., que escreveu um livro de grande sucesso, um bestseller extraordinário, intitulado Novo Mundo, que falava do Brasil como a terra dos antropófagos, povoado por feras ameaçadoras. O crédulo público europeu deglutiu o livro, que acabou dando o nome do continente como América, devido ao escritor, não ao geógrafo. Logo em seguida o aventureiro alemão Hans Staden, também autor de dois sucessos divulgou Duas Viagens ao Brasil e Viagem ao Brasil, contando suas peripécias, uma delas de seu tempo na engorda para ser devorado num banquete antropofágico, e as delícias de ser cuidado por um harém de jovens índias que tinham como missão mantê-lo feliz para garantir carne tenra no churrasco. Essa era a imagem do País no século XVI.
No século XX, o Brasil teve dois problemas de imagem. A primeira no Estado Novo, em 1937, quando as mídias alemã e italiana apresentaram o golpe de estado como uma adesão aos regimes nazista e fascista, que só foi desmentido com a aliança militar e política com os Estados Unidos e a instalação de bases militares no Nordeste. Assim mesmo, até hoje a imagem de Getúlio Vargas pena com as suspeitas de parceria com Adolf Hitler e Benito Mussolini.
Nos anos 1970, o País teve graves problemas de imagem, devido à difusão de notícias de violências políticas. Principalmente depois de 1970, quando as levas de dissidentes brasileiros que vagavam pelos continentes americano e pela Europa ganharam o status de refugiados, o Brasil entrou de novo no rol dos vilões. Um líder político chegou a comparar a imagem do presidente Ernesto Geisel à do caricato ditador de Gana, país africano governado pelo general Idi Amin Dada. Foi difícil superar essa fase. Mesmo com o milagre econômico daqueles tempos, com crescimento do PIB acima de 10%, a hostilidade à juventude custou caro ao regime.
Quanto aos problemas da área ecológica, a partir dos anos 1990, o Brasil conseguia lidar com certa desenvoltura com os passivos ambientais. Os governos FHC, Lula e Dilma, integrados com as sociais-democracias europeias e os governos democratas dos Estados Unidos, puderam ir driblando as pressões, relacionando-se cordialmente com as comunidades acadêmicas, científica e política dos países desenvolvidos, e absorvendo, na medida do possível, as pressões das sociedades civis, as chamadas ONGs. Com isto puderam obter uma trégua, agora rompida dramaticamente com a instalação de um governo hostil a essas configurações. O atual governo está encontrando dificuldades para restabelecer confiança. Certamente, está dialogando com as pessoas erradas.