No Congresso, em Brasília, é crescente o número de pessoas de peso (bem informadas e bem formadas) com uma pulga atrás da orelha: que carta terá na manga o governador do Rio, Wilson Witzel, para enfrentar, cara a cara, uma família tão poderosa no Estado quando os Bolsonaros?
Esta dúvida inflama a ansiedade no Palácio do Planalto, na capital, e no Palácio Guanabara, nas Laranjeiras. A verdade é que ninguém sabe o que esperar desse embate do governador contra seus padrinhos políticos. Todas as hipóteses valem, mas nenhuma se sustenta.
Não há dúvida de que o presidente Jair Bolsonaro não é um suspeito credível no caso em voga. Nunca se meteu com milícias. Ele sempre foi um candidato ideológico, vencedor de seis eleições sem ter partido organizado, currais eleitorais, comitês ou clientelas. Não precisava desses apoiadores.
Os alvos seriam os filhos, concorrentes do governador? Flávio, ex-deputado estadual (hoje senador) e Carlos, vereador, têm carreiras diferentes do pai.
Embora o nome do presidente seja muito importante para chamar votos, é provável que, como a grande maioria dos políticos cariocas, tivessem algum ponto de ligação com o submundo. Não com o crime em si, mas com atividades submersas que fazem parte da vida desse estado desde sempre.
Basta lembrar que um dos pontos fortes do ex-governador Leonel Brizola, do PDT, foi retirar a polícia dos morros. Algum motivo teve, com certeza. Até hoje não falta quem culpe o caudilho gaúcho pelo aumento da insegurança na cidade.
Motivo do crime?
As suspeitas que, nos últimos dias, aparecem na mídia, vindas dos vazamentos, sugerindo proximidade da família do presidente com os acusados de serem os executores da vareadora Marielle Franco, não se sustentariam numa narrativa policial elementar.
Qual o motivo do assassinato? É preciso dar esta resposta básica a qualquer investigação criminal. Por que parlamentares de extrema direita mandariam matar uma aprendiz de vereadora que ainda engatinhava na política municipal? O autor deste conto teria seus originais devolvidos.
Como Marielle se situava no cenário carioca? A vereadora era uma política ideológica. Seus votos vinham de adeptos e não de currais aglutinados nos territórios do submundo.
Pelo contrário, era uma política de causas humanitárias, longe das negociatas, eleita por um partido de extrema esquerda, o Psol, sucessora do deputado federal Marcelo Freixo, mandado para Brasília para fazer nome nacional e disputar o governo do Estado em 2022. Ou seja, ela não tinha nenhuma disputa de território nem de eleitorado com os filhos do presidente. Muito menos com as milícias. Estranho.
O dia do chacal
Outra hipótese, tão especulativa quanto esta que está na praça: Marielle teria sido abatida por um chacal, buscando um efeito demonstração de poder dos cartéis colombianos, para dizer ao novo governo brasileiro que sua pauta de criar embaraços reais ao trânsito dos carregamentos de drogas pelo território brasileiro deve ser bem medido e pensado. Quais são seus diferenciais da bandidagem tupiniquim?
Essa é uma posição especulada por estudiosos em casos policiais, que acompanham a luta contra o crime nos diversos países. Estes grupos ecléticos são integrados por ex-agentes policiais e de inteligência, acadêmicos, escritores, jornalistas especializados e livre pensadores aficionados em mistério.
Eles argumentam que tanto o pistoleiro quanto a arma usada estão acima da capacidade operacional desses ex-policiais toscos que integram as milícias do Rio de Janeiro. Embora tanto no tráfico como nas milícias haja muitos pistoleiros bons de tiro, não teriam em seus quadros alguém com a sofisticação de treinamento para atuar nesse cenário. O sniper teria vindo de fora, egresso de forças especiais.
Pintam o quadro: o atirador disparou à noite, numa rua mal iluminada, sacolejando em dois carros em movimento, acertando o alvo em cheio através da lataria do carro. Para essa missão, teria de usar uma arma dotada de estabilização giroscópica, com localização do alvo por mira com detecção de calor e visão noturna (visão de raios x?). Coisa de cinema.
Estes observadores, pelo que se fala entre eles, dizem supor que o chacal tenha vindo da África do Sul. Chegou nas sombras, entrou no país, fez o serviço e se foi. Nunca mais ninguém viu.
Esta versão já foi mencionada n’Os Divergentes na edição de 30 de julho. A matéria, com o título “Assassinato de Marielle migra para o mistério dos crimes insolúveis”, dizia, à certa altura: “Outra suspeita a levantar novas dúvidas foi a execução misteriosa de dois funcionários do crime organizado do Rio de Janeiro, Alexandre Cabeça e o subtenente Anderson Cláudio da Silva”, publicado no jornal O Globo. Nunca mais se ouviu falar desta suposta queima de arquivo.
O poder dos cartéis
Estes aficionados se respaldam na força demonstrada pelos grandes cartéis, que puseram de joelhos o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, que, na semana passada, atropelou os sistemas judiciais de seu país mandando soltar imediatamente o traficante Ovídio Guzman, filho do chefão “El Chapo” (preso nos Estados Unidos), detido em flagrante num tiroteio com forças seguranças em que morreram policiais.
O presidente, diante de uma demonstração de força do cartel, soltou o rapaz e declarou sem pejo: “Decidiu-se proteger a vida das pessoas, e eu estive de acordo com isso. Não se trata de massacres; a captura de um delinquente não pode valer mais que a vida das pessoas”.
No Brasil não há organização criminosa com esse poder. As grandes facções, Comando Vermelho, PCC e outras, têm comando centralizado, dominam territórios da periferia e atendem ao mercado interno brasileiro; as milícias são agrupamentos formados por ex-policiais, dispersos, cada grupo com seu projeto.
Alguns ainda se dedicam a combater a bandidagem nos morros financiados pelo pequeno comércio da periferia, enquanto outros já descambam para a o crime e a contravenção, vendendo proteção e dominando à força certos mercados de varejo (gás de cozinha, por exemplo) ou, já se sabe, de construção civil nas favelas.
As milícias, tratadas na mídia como se fossem organizações, não tem comando centralizado. Já os grandes carteis do Pacífico detém esse poder demonstrado no México. O assassinato de uma figura externa a esse mundo do crime (como Marielle, militante de direitos humanos) seria apenas uma demonstração exagerada de força e capacidade operacional acima dos padrões brasileiros. Ela não atraía vinganças ou retaliações, pois não integrava o mundo do crime.
Quem matou Marielle?
Volta a pergunta. Se Marielle não era rival dos Bolsonaros, se não havia motivo para o crime organizado ou as milícias eliminarem-na, essa inculpação não tem como ameaçar os filhos do presidente. Os dois suspeitos presos, Ronnie Lessa e Anderson Gomes, ambos milicianos, negam o crime.
Seus advogados dizem que as provas são fracas, apenas coincidências fáceis de derrubar num júri. Outra possibilidade: os dois seriam fementidos, aqueles laranjas que assumem os crimes dos chefões e cumprem pena no lugar dos verdadeiros culpados.
Com isto, acabaria o mistério, recuperar-se-ia a imagem da polícia e das autoridades. Um cala-boca. Só falta mostrar o motivo do assassinato, sem envolver Marielle com o crime organizado. Seria um tiro no pé.
Então porque a ameaça velada do governador Wilson Witzel provocaria tamanho alvoroço? Seria muita temeridade e ingenuidade política o governador atacar frontalmente o presidente da República sem bases muito sólidas para aguentar o repuxo.
Se não é o crime em questão, que seria? Uma pulga atrás da orelha.