Nas últimas semanas, circulava pelas redes sociais um meme divertido. Nele, aparecia uma foto do presidente Jair Bolsonaro com seus filhos 01, 02 e 03. E a seguinte legenda: “Pressionado pela crise, Bolsonaro resolveu se reunir com sua oposição”.
Eis no meme o resumo do que representará o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva ao cenário político agora que deixou a sala/cela que ocupava na sede da Polícia Federal em Curitiba. Até então, Bolsonaro mantivera no Palácio do Planalto um inusitado modelo de autossuficiência: ao mesmo tempo em que governava, tratava de fazer oposição a si mesmo.
Alguns chegaram mesmo a concluir que se tratava de estratégia – e já tratamos disso por aqui. Mas o fato é que a usina de crises que acompanha o governo desde quando o vereador Carlos Bolsonaro se aboletou na mala do Rolls Royce presidencial e meteu a sola dos seus sapatos no delicado couro do banco daquela joia da mecânica britânica é instalada dentro do próprio governo. Com Lula de volta à cena, pela primeira vez Bolsonaro enfrentará de fato uma oposição externa, realmente vinda daqueles que lhe são adversários.
Se da prisão, Lula tivera a capacidade de se manter no debate político, essa capacidade multiplica-se de forma incomensurável com ele livre. Lula sairá pelo país amplificando com a inegável capacidade de retórica que sempre teve as bobagens e crises desnecessárias que Bolsonaro cria. Se era estratégia diversionista, agora haverá quem possa capitalizá-la. Se era estratégia diversionista, ela já implicava riscos, porque diminuíra a base de apoio do governo, dividira o campo conservador, jogara o presidente contra seu próprio partido, o PSL. Agora, há quem possa vir a lucrar com tudo isso.
Um dos maiores efeitos da vitória de Bolsonaro foi provocar a desarticulação da esquerda que poderia lhe fazer oposição. Um efeito natural: é normal que quem perca se desarticule. Vale lembrar que quando Lula foi eleito presidente, a composição anterior também se desarticulou e quase se esfacelou. Num primeiro momento, o PFL, antes de trocar o nome para DEM, chegou a cogitar a sua extinção.
A desarticulação da esquerda vinha fazendo com que os partidos de oposição muitas vezes somente assistissem à confusão que o próprio Bolsonaro e sua trinca de filhos provocava no governo. Há uma grande possibilidade de que, agora, os contendores nessa disputa não sejam mais Carluxo e algum general. Ou ex-aliados como Gustavo Bebianno, Alexandre Frota ou Joice Hasselmann.
Na euforia provocada pelo seu lado no Fla x Flu, tem sido ignorado um fato que ainda persiste apesar da liberdade de Lula. Ele está solto, mas segue não podendo ser candidato à Presidência da República. A condenação em segunda instância o impede. Não por conta de uma interpretação como acontecida no caso da prisão. O que o impede é uma lei aprovada pelo Congresso e sancionada pelo próprio Lula quando era presidente: a Lei da Ficha Limpa. A legislação estabelece que alguém condenado em segunda instância não pode disputar cargo eletivo. O impedimento não é automático. Lançadas as candidaturas, a Justiça Eleitoral tem de se debruçar sobre cada caso e analisar se há ou não as chamadas condições de elegibilidade. Mas não há nenhuma razão para imaginar que o Tribunal Superior Eleitoral, diante da condenação que agora já é em terceira instância mude o entendimento que teve nas últimas eleições presidenciais quando, por seis votos a um, indeferiu a sua candidatura.
Assim, mais do que aparecer como o possível adversário de Bolsonaro nas próximas eleições, não é de se descartar que o grande papel que Lula exercerá agora fora da prisão será o de reaglutinador da esquerda, das forças que se opõem ao atual governo. Em entrevistas anteriores à sua liberdade, ele já fizera alguns acenos nesse sentido.
Além disso, sempre vale se observar essa incrível capacidade que o continente sul-americano tem de se replicar. Quando o continente se encheu de caudilhos no final da primeira metade do século passado, tivemos Getúlio Vargas como o nosso por aqui. Quando os coturnos e as fardas verdes deram as caras por aqui, havia coturnos e fardas verdes espalhadas por toda a América do Sul. Quando um desses países se redemocratizou, se redemocratizaram os outros. Quando um guinou à esquerda, viraram também os outros. Quando resolveram, então, desviar-se à direita, eis Bolsonaro acompanhado de colegas conservadores por aí.
Na imensa velocidade das mudanças nesses tempos da revolução informática, em diversos países da América do Sul, esboça-se já uma reação à guinada conservadora. E o caso mais concreto deu-se na Argentina, com o retorno do peronismo.
Lá, Cristina Kirchner abriu mão de ser a candidata à Presidência e montou a vitoriosa manobra que colocou um nome mais moderado, mais palatável que ela, Alberto Fernández, à frente da chapa. Cristina sabia que reunia ao mesmo tempo grande popularidade e grande impopularidade. Era ao mesmo tempo forte e imensamente rejeitada. Assim, saiu do primeiro plano para ser candidata a vice-presidente. Deu certo.
Além da impossibilidade legal, Lula carrega características semelhantes. É popular e impopular. Forte por um lado e imensamente rejeitado por outro. Talvez possa emprestar sua capacidade aglutinadora da mesma forma a uma composição na qual não esteja à frente.
Por outro lado, Lula traz de volta a polarização que, em 2018, beneficiou mais Bolsonaro. O hoje presidente tratou de querer ter sempre Lula como seu adversário, porque sabia que Lula aglutinava os ódios que podiam reverter a seu favor. Hoje, porém, Bolsonaro está desgastado pelo motor da usina de crises que ele próprio alimentou no Palácio do Planalto. Se Lula será capaz de reverter tal desgaste a seu favor e a favor do grupo oposicionista, veremos a partir de agora. O fato, porém, é que há um senhor de barba branca agora a ocupar o espaço de oposição que até então eram do 01, do 02 e do 03.