A floresta amazônica com seus 4,2 milhões de quilômetros quadrados de matas intactas seria o maior ativo financeiro para alimentar os mercados de títulos nos próximos anos. Esta é a expectativa, com o surgimento anunciado de negociação de créditos de carbono, de um novo papel que vai inundar os pregões nos próximos anos. Se acreditassem nisso, tal como se apresenta nos sites ambientalistas, os fazendeiros estariam com água na boca, sentados nos alpendres de suas propriedades enquanto a paisagem trabalharia para encher seus bolsos. Cada pé de soja que deixassem se plantar tilintaria no fundo de seus cofres.
Esse é um segmento do mercado financeiro internacional que está em fase de organização, segundo informou o CEO (diretor-presidente) da Moss, Luiz Felipe Adaime, empresa brasileira recém-criada, em março deste ano, para operar no mercado de créditos de carbono. Colhida pela paralisação da pandemia do novo coronavírus, a Moss também está em quarentena, devendo reiniciar operações tão logo as restrições sejam levantadas e os negócios retomados.
Esta abertura parece uma caricatura. Entretanto, é assim que esse projeto está chegando à mídia e sendo oferecido como salvação para o meio ambiente. Uma forma de paralisar a agricultura e a pecuária. Segundo esse modelo, os créditos de carbono seriam computados a partir da renúncia do proprietário rural à produção, como forma de evitar desmatamento, acabar com queimadas, deixando de produzir gás carbônico (CO²) e, consequentemente, de contribuir para o aquecimento global. Cada pedaço de mata nativa em pé é dinheiro no bolso do dono da terra. E, assim, colocam-se no mesmo saco latifundiários hidrófobos com especuladores financeiros insaciáveis. E, como no filme “Nunca aos Domingos” (Jules Dassin), vão todos felizes para a praia. Como estão todos carecas de saber que as gôndolas de supermercados produzem todos os tipos de alimentos sem soltar um só grama de CO² na natureza. Para que plantar?
Moeda no berço
Não é para já. O assunto ainda está verde, sem trocadilhos. Está começando a se revirar no berço, mas virá com força brevemente. Como há dias advertiu num artigo publicado em seu blogue Bonifácio, o ex-ministro Aldo Rebelo (relator do Código Florestal em vigor), há muito mais do que aviões de carreira no ar, como dizia o humorista gaúcho Barão de Itararé.
Escreveu Rebelo: “A partir da década de 1980, com a crise das dívidas externas e o advento da ‘globalização’ financeira, a preocupação dos centros oligárquicos do Hemisfério Norte de assegurar o ressarcimento dos seus empréstimos e, ao mesmo tempo, gerar vastos fluxos financeiros para alimentar e amplificar a ciranda que viria a gerar sucessivas ‘bolhas’ especulativas, motivou uma série de iniciativas para forçar os países em desenvolvimento a ceder aos ‘investidores internacionais’ o controle dos seus patrimônios nacionais, primeiro, empresas estatais e, depois, os recursos naturais dos seus territórios. Entre elas, destacam-se os famigerados acordos de trocas de ‘dívida por natureza’ (debt-for-nature swaps), a imposição de condicionantes socioambientais a empréstimos internacionais e, mais recentemente, a extensão desses condicionantes aos fluxos de investimentos”.
Novo papel no mercado
O mercado financeiro descobriu aí mais um papel para ser negociado, rendendo comissões de corretagem e trabalho muito bem remunerado para os yuppies. Embora esses créditos sejam um produto de origem predominantemente urbana, mais ligados à indústria e aos serviços, o setor rural poderá e deverá ser envolvido.
Financeiramente, o mercado de créditos de carbono ainda engatinha, movimentando negócios em valores em torno de 46 bilhões de dólares por ano, uma quantia ridícula no cenário da ciranda financeira mundial. Mas está chegando aos pregões, pois mesmo sendo pequeno valor perto dos demais papeis em bolsa, tanto de capitais como de mercadorias, é relevante, pois US$ 46 bi é bom dinheiro em qualquer lugar do mundo.
Este produto é vendido numa embalagem virtual de peso equivalente a uma tonelada de gás carbônico. A proposta do mercado é que a tonelada seja vendida a US$ 10, mas o consumidor não está pagando mais de um dólar por mil quilos virtuais de atmosfera envenenada. Até o momento, esse mercado é apenas um sonho dos especuladores (aqui a expressão não é usada no seu sentido pejorativo, mas na aplicação técnica de operadores em mercado livre, do tipo capitalista, com bolsas de valores para regular as transações).
Com isto, as empresas ambientalmente corretas que se apresentam como apoiadoras desse novo sistema (usinas a carvão, refinarias, indústria química, etc.) pagam pouco para fazer bonito. Compram o perdão de seus pecados a frações de dólares, muitas vezes. O produtor vende pelo que o cliente paga, pois o empresário não-emissor, por seu turno, só tem a ganhar se alguém lhe cobre custos de seus processos de fabricação ou no que for, que soltasse gás carbônico ou metano no ar. Assim, neste momento o preço é vil.
O preço da contaminação
Cada mil quilos de CO² liberado na atmosfera gera a demanda de reposição equivalente pelo poluidor, pagos em dinheiro. Para compensar, ele compra a economia de resíduos de um produtor que deixou de emitir, ganhando, com isto, o direito de se ressarcir dos custos adicionais que teve para compensar seu investimento e oneração do produto final ambientalmente correto (porém mais caro). O gerador de aquecimento pode justificar-se dizendo: “Gastei mais que meu concorrente porque cortei a emissão da CO². Então, aquele produtor, que continua emitindo seus gases e resíduos, paga o ônus de minhas despesas extraordinárias”. Ninguém perde e todos ganham, seria o resumo da ópera. Mais ou menos isto, grosso modo.
Uma dificuldade nesta altura é medir o quando de CO² cada qual emite, para cobrar seu preço. Na indústria dá para tirar a medida na boca da chaminé. Já na agricultura e no comércio, é mais difícil. Vai depender de parâmetros a serem desenvolvidos e aceitos no mundo inteiro. O que isto significa?
Neste momento, a questão amazônica, a regularização fundiária, as condenações dos flatos de vacas e outros vilões da turma do aquecimento global estão fora do alcance dos créditos de carbono. Entretanto, é um tema relevante, pois os bancos, corretores e, especialmente, os especuladores de mercados bursáteis (gostou do bursátil?) estão agindo neste sentido. Aí há dinheiro grosso em potencial. Por esta porta os créditos de carbono vão chegar à população.
Nesta fase inicial, os interessados são os profissionais dos novos mercados financeiros, pois estes créditos de carbono devem gerar um selo negociável, semelhante à atual moeda virtual bitcoin. Portanto, antes de falar sobre o mérito do projeto, vou discorrer sobre o novo papel que está em gestação.
O valor do ar puro
No Brasil, segundo o financista Luís Adaime, o negócio recém está começando. A empresa dele só espera o fim da pandemia. Está parada. Entretanto, já há negócios. Por exemplo, o lixão de São Paulo desenvolveu um sistema de queima de gás metano, que evita a disseminação desse resíduo na atmosfera. Isto gerou um crédito de carbono, vendido a empresas norte-americanas a 10 mil dólares por ano. Já é alguma coisa.
Também os bancos Itaú e Bradesco são compradores destes créditos para compensar um passivo calculado a partir da emissão de gás carbônico por seus funcionários e clientes que se deslocam em automóveis particulares ou transporte a diesel. Também a Natura, considerada uma das empresas ambientalmente mais corretas do mundo, compra créditos de carbono para compensar as emissões de suas indústrias químicas de cosméticos e perfumes, e também, como os bancos, para pagar a mobilidade de seus trabalhadores. E assim vai, pouco a pouco, chegando esse novo papel (na verdade, “papel” é eufemismo, pois será um toque eletrônico num chip).
Em resumo: é um negócio para o futuro. Não há segurança de que isto será um fator preponderante para diminuir a poluição e deter o aquecimento global. Mas pode dar bom dinheiro.
Organização do mercado
Para concretizar-se é preciso que seja organizado o mercado. Há iniciativas nas Nações Unidas, já enunciadas nos acordos parciais sobre parâmetros de Quioto e da COP-25. Isto, porém, demanda um acordo multilateral envolvendo os 120 sócios da ONU. Será possível? Ninguém acredita, nem mesmo os banqueiros.
Então, tentam-se acordos parciais, limitados. Os países da Europa Ocidental estariam encaminhando algo concreto nesse sentido. Argentina e Chile, na América do Sul. Austrália, China (sim, a China, a rainha do aquecimento global, está querendo acelerar os créditos de carbono) e Japão, no Pacífico.
Mas nada concreto, pois enquanto os americanos não aderirem, nada feito. Ao todo, há movimentações consequentes em 57 países e em 28 entes sub-regionais, como Califórnia, Flórida e outros estados norte-americanos, e departamentos e províncias em outros países. Inclusive no Brasil, com os estados do Norte querendo fazer algo neste sentido (acordos com a Dinamarca para botar a mão no Fundo Amazônico, sem passar pelo governo federal), imaginando que vão poder vender as copas das árvores da Floresta Amazônica.
Com uma formação acadêmica sem tradução reconhecida em português, ainda desconhecida no Brasil, Menagement Science and Engineering, pela Universidade de Stanford, dos Estados Unidos, o engenheiro Adaime chega à frente da futura concorrência. Este troço pode ser uma realidade daqui a anos. Uma regulamentação forte pode obrigar empresas que emitem gases de efeito estufa a cobrirem os custos extras das empresas que reduzirem emissões, mas tiverem aumentos de despesas em função dessas técnicas nocivas de produção. Seria algo como a Lei do Ventre Livre, no século XIX – tentativa de aliviar as pressões internacionais sobre o Brasil por causa da escravidão -, imaginando-se que, com isto, algum dia as emissões industriais e urbanas chegariam a níveis suportáveis.
Já no campo, é quase impossível determinar quanto de gás carbônico cada árvore poupada, de tal ou qual tipo, sequestra de gás carbono para fazer jus a seu selinho conversível. Mais complexo são os animais, principalmente os bovinos, emissores de gás metano, um produto valioso, pois cada alívio corresponde, nas medidas que estão sendo aceitas, 30 vezes mais que uma grama de CO².
Tirando a vaca do pasto, o pecuarista poderia fazer uma fortuna nunca imaginada. Entretanto, até agora não há como medir a redução de emissões em lavouras ou pastagens, para converter em dinheiro vivo (ou virtual). Nem mesmo em reservas florestais de propriedades rurais já delimitadas e catalogadas nos termos do Código Florestal. Esta é uma dificuldade que os burocratas terão de superar rapidamente, para que esse mercado não fique parado à espera de regulamentos.
Emissões de pessoas físicas
Os valores e medidas dos créditos de carbono deverão ser algo controlado pelo estado, que terá as condições de medir, por exemplo, áreas de mata virgem, e cobrar de empresas pelos seus selos.
Por fim, há o emissor pessoa física: conforme seus equipamentos caseiros, como geladeiras, televisores e outros, ou o uso de automóvel, ou o que seja que solte fumaça, você será taxado, como num imposto de renda pessoa física. Neste caso, se sua casa tem energia solar, você poderá ter um abatimento. Este é o sonho dos ambiental-financistas. Haverá papel para todo o mundo comprar e vender, pois se você quiser dar um carro para seu filho, pode comprar o selinho do vizinho que anda de metrô.
Então, é muito difícil que, nos quadros atuais, se chegue a um consenso mundial para implantar o sistema. O que não impede que, aos poucos, se vá aplicando e, principalmente, que se encontre jeito de ganhar algum dinheiro com os tais selos de emissões. Seria isto que estaria entrando na pauta dos congressistas brasileiros, pois há projetos neste sentido tramitando na Câmara e no Senado?
Conflito de gerações
Por fim, a grande esperança dos mentores desse projeto: a juventude vai fazer que isto entre em vigor de um jeito ou doutro nos próximos 10 anos. Isto se baseia em pesquisas mundiais realizadas pelo sistema financeiro. Seria inexorável. Constataram que aquecimento global é um tema percebido crescente e diferentemente pelas várias gerações que interagem hoje no mundo, e que dividem o poder, devido a seus potenciais eleitorais, políticos e de comando da opinião pública. Dá para ganhar dinheiro com isto.
A geração de quarta idade, acima dos 80 anos, não considera aquecimento global um problema. Nem mesmo acredita muito que seja uma realidade. Os babies boomers, nascidos a partir de 1942, entre 50 e 79 anos, consideram 23% de gravidade. A geração X, entre 40 e 50 anos, atribui 40% de gravidade ao caso. Os da geração Y, entre 30 e 40 anos, dão 60% de gravidade. Já a geração millenium, nascida no século 21, dá 93% de gravidade ao aquecimento global. É um número arrasador.
Esta geração vai entrar na sociedade raspando tudo. É neste mercado que os especuladores do crédito de carbono acreditam.
Outro detalhe. A geração millenium é despojada, não é sensível à sociedade de consumo, como as demais gerações do baby boom para cá. É bom lembrar que a geração de quarta idade, nascida antes da Segunda Guerra, também não era consumista. Este será um fator de mudança de comportamento que terá grande influência nas políticas ambientalistas do futuro (até o fim de século, o Brasil vai ter 50 milhões de habitantes a menos do que hoje, diz uma previsão recente).
Este será o assunto dos debates amazônicos até a volta das chuvas no cerrado, em novembro, quando se extinguem as queimadas. Quanto aos desmatamentos, é preciso atentar para a proposta da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, de reduzir a área plantada, compensando com a aplicação de tecnologia nas lavouras para aumentar a produção de alimentos.
Uma coisa parece irrecorrível: poderá o Brasil sentar em cima de suas reservas de áreas agricultáveis quando os sete bilhões de habitantes do globo quiserem comer todos os dias? Outra questão a pensar, que vai além das faladas barreiras das concorrências desleais de nossos competidores no mercado de commodities agrícolas.