Série Perfis Brasileiros – O Palhaço Carequinha

Carequinha, Foto Orlando Brito

George Savalla Gomes, ou melhor, o palhaço “Carequinha”, tinha na alegria o grande compromisso com a vida. Dedicou seus 91 anos inteiramente ao sorriso de crianças e adultos. Nasceu em 1915, praticamente no picadeiro do Circo Ocidental, do qual o pai e a mãe eram trapezistas. Aos cinco, já apresentava suas estripolias ao público. Foi cantor de rádio, ator de cinema e novelas, o primeiro animador de programas infantis da televisão brasileira, a Tupi e outras no Rio Grande do Sul. Mais tarde, trabalhou na extinta tevê Manchete e, por fim na Rede Globo.

Durante décadas dividiu audiência com seriados estrangeiros, como Os Flintstones, Jonny Quest, Os Três Patetas, Perdidos no Espaço, Jornada nas Estrelas e National Kid.  Lançou bordões, compôs cantigas de roda e gravou marchinhas de carnaval. Um dos grandes sucessos foi “O Bom Menino”, com participação do flautista Altamiro Carrilho e cantada por brasileiros de Norte a Sul.

Mas seu grande personagem foi mesmo o adorável palhaço de voz amigável, chapéu de aba curta, roupas coloridas e gola frouxa, bom humor permanente. Artista circense por excelência. Por quatro vezes representou o Brasil no concurso Internacional de Palhaços. Numa delas, na Itália, ganhou a medalha de Ouro.

Em 1991, juntamente com comediante Dercy Gonçalves, recebeu a maior homenagem de sua vida: desfilou no alto de um carro alegórico da Escola de Samba do Viradouro, na Avenida Marquês de Sapucaí. Foi uma das raras vezes que o palhaço chorou. Foi às lágrimas, não de tristeza. Mas de pura emoção. Ao lado do paranaense Piolim e do paulista Arrelia, o fluminense Carequinha embalou gerações e gerações com suas brincadeiras. Falecido em 2006, ainda hoje, é considerado patrimônio da cultura do país.

Em 1991, recebi a bolsa de Fotografia da Fundação Vitae, instituição sediada em São Paulo e presidida pelo intelectual e empresário José Mindlin. Meu projeto era fotografar grandes nomes que se destacaram, cada um à sua maneira, e acabou inserido na história do país. Eram “setentões” e “oitentões” notáveis ligados às artes, à ciência, na cultura popular. Listei em torno de cem deles. “Senhoras e Senhores”, esse era o título que dei ao meu trabalho. E evidentemente, o senhor George, ou melhor, o Carequinha, era figura essencial desse rol.

Fiz as fotos dos primeiros personagens em preto-e-branco. Resolvi que em cada uma delas deveria tomar parte esse pano de fundo, vermelho. Viajei de Brasília para vários lugares com o tecido em minha bagagem. Afinal, ele deveria compor o cenário em que estariam todas as estrelas da minha lista. À medida que fui cumprindo minha pauta, percebi que eu necessitava da cor para obter maior aproveitamento visual do matiz encarnado.

Resolvi também que deveria acrescentar ao projeto quatro perguntas aos personagens. As mesas quatro perguntas para todos. Descobri que uma fotografia somente era pouco para ocasiões tão singulares, o encontro com aquelas estrelas respeitadas e renomadas do Brasil. A primeira indagação era sobre sua área de atuação. A segunda, sobre a fama. A terceira – por serem já idosos – qual tinha sido o melhor momento de sua vida. E a última, sobre chegar à idade acima de oitenta anos. Perguntas simples, mas respostas carregadas de sabedoria, poesia.

Fui encontrar Carequinha em sua casa, em São Gonçalo, perto de Niterói, no Rio. Casa simples, com portão ferro, a última do ponto final de uma linha de ônibus. Cheguei na hora marcada, dez e meia da manhã, depois do telefonema no dia anterior. Recebeu-me à porta um senhor moreno, baixinho, sorriso contido, cabelos bem penteados para trás, ainda pretos. Por um instante, não imaginei ser aquele o palhaço que embalou minha infância. Era. Só certifiquei-me disto depois de ouvir a voz inconfundível.

Sentei-me no sofá da pequena sala, enquanto o vi se afastar para sintonizar a tevê, em preto-e-branco, na qual três crianças assistiam ao programa da Xuxa, sentadinhas no chão. Estendi na frente de um armário de madeira o meu pano vermelho e, então, meu personagem abriu uma caixa de sapatos e dela retirou uns narizes e uma cabeleira postiços. Pedi-lhe que pintasse somente a metade do rosto. Eu queria mostrar que, por trás da imagem tão conhecida do famoso palhaço, havia também um homem comum de nome George Savalla Gomes.

Não durou mais que cinco minutos a sessão de fotos.

Foi quando passei à fase das perguntas. Eu as apresentava e ele. Pensativo, as respondia. Em meus ouvidos, até hoje ouço o barulho que vinha da cozinha de uma panela de pressão. E o agradável cheiro úmido de um cozido de costela. Bem, aquele trabalho para cumprir a aplicação da Bolsa Vitae, acabou se transformando em livro, publicado no fim de 1992. E só virou livro porque um amigo – Jack Corrêa, à época diretor da Fiat – emocionou-se ao ver as fotos e os textos, a ponto de transformá-los em presente de fim de ano da empresa.

No dia do lançamento do livro, fiz questão de trazer como convidado o Carequinha e outros notáveis velhos para a festa. Não sei se a fotografia que fiz levou emoção a muita gente, mas as respostas das minhas quatro perguntas, com certeza, sim:

Alegria:

– Eu sou a alegria. Minha vida sempre foi uma grande brincadeira.

As pessoas dizem que fui o primeiro “Xuxo”. Engano. A Xuxa é que é o atual Carequinha.

Fama:

– O Carequinha ficou mais conhecido que o George. O negócio é criar fama e não deitar na cama.

Melhor momento:

– Em Florianópolis, quando fui fazer uma apresentação. Chorei de felicidade no desembarque. No aeroporto, fui recebido por mais de 3 mil crianças. E também no carnaval de 1991, quando fui tema da escola de Samba Unidos do Viradouro e desfilei num belíssimo carro alegórico na Marquês de Sapucaí. Chorei de novo quando notei que estava sendo aplaudido por netos, pais e avós. Enfim, por todos. Eu tinha a sensação de que o mundo inteiro estava me aplaudindo. Foi muito emocionante.

Idade:

– As crianças não me deixam envelhecer. Além disso, não digo a ninguém a idade que tenho. Assim é melhor. Não ligo muito para o tempo. Os palhaços não têm idade, têm felicidade.

Orlando Brito

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