O pessoal da esquerda desancou Gláuber. Meses antes, o cineasta baiano havia declarado admiração pelo general Golbery do Couto e Silva. Agora aparecia nas páginas do jornal O Globo cumprimentando o presidente Figueiredo. Logo Gláuber Rocha, um dos mais ferrenhos críticos do regime militar.
Ele, cineasta vencedor de festivais com filmes de caráter político e contestador, que tinha programa de TV para desqualificar os milicos, fã de Brizola, estava ali de mão estendida para um general-presidente da Revolução de 64.
Para mim não foi surpresa encontrar Gláuber em Sintra. Estávamos no mesmo vôo de Paris para Lisboa dois dias antes. Éramos em torno de vinte jornalistas – entre tantos, Merval Pereira, Andre Gustavo Stumpf e Ana Amélia Lemos, que depois elegeu-se senadora. Tínhamos ido à França cobrir a primeira etapa da viagem de Figueiredo à Europa.
Durante o voo, do aeroporto de Roissy-De Gaulle ao de Portela do Sacavém, Gláuber não parou. Se levantava da poltrona do Boeing, sentava-se, ia e vinha. Com o brilhantismo e a loquacidade de sempre, falava dos temas da atualidade.
O artista relembrava o bom papo que tivera no dia anterior em um restaurante da Rue Saint André Des Arts com Carlos Henrique e Toninho Drummond, da Rede Globo, e o crítico de cinema do Jornal do Brasil, Maurício Gomes Leite.
Depois, já instalado na capital portuguesa, comentei com Carlos Henrique e Toninho, meus amigos, o feio aspecto de Gláuber. Usava uma japona azul marinho rota e sem alguns botões, manchada de café e farelo de pão caído na lapela, cabelos desgrenhados, olheiras acentuadas, voz cansada.
No dia seguinte, nosso destino era Sintra, a bela e aprazível cidadezinha perto de Lisboa, logo depois de Queluz, outro vilarejo, onde nasceu nosso Dom Pedro I, berço do Brasil, casa dos Orleáns e Bragança. O presidente João Figueiredo tinha agenda no Palácio Nacional. E lá fomos nós, o grupo de quinze ou vinte jornalistas para nossa cobertura.
Imponente lugar, Sintra. Foi lá que, nos idos de 1500, um mensageiro a cavalo entregou a Dom Manuel, o Venturoso, rei de Portugal, a carta que Pero Vaz de Caminha escrevera dando notícia do descobrimento de uma tal Terra de Santa Cruz, depois da longa e tenebrosa viagem da esquadra de caravelas comandada por Pedro Álvares Cabral.
O Palácio Nacional fica do ladinho da Pensão Central. Antiga, mui nobre e histórica Pensão Central, revestida de azulejos e que hospedara em seus aposentos de janelas com floreiras grandes nomes da cultura. Eça de Queirós, Fernando Pessoa etc. Em frente, fica a tradicional bodega “A Piriquita”, onde se delicia as melhores queijadinhas do mundo. Isso mesmo, do mundo. Pois foi lá que Gláuber fizera reserva.
Ao ver a movimentação da comitiva presidencial, não teve dúvida, juntou-se ao grupo de pessoas que foram ver de perto o desenrolar da cerimônia. Foi então que alguém o viu e o chamou para cumprimentar o general João Figueiredo. Coisa de alguns segundos.
Depois, no autocarro de volta a Lisboa, o amigo Carlos Henrique disse-me que no almoço da véspera Gláuber reclamara de dores no estômago. Ele próprio, Gláuber, achava que o permanente mal-estar decorria da inalação dos gases de boulette, o carvão que aquecia o quartinho do hotel em que se hospedava, no Quartier Latin. Não era.
Esta é, com certeza, uma das derradeiras imagens de Gláuber Rocha. Meses depois, ele viria morrer de septicemia na Clínica Bambina, no Rio, em 22 de agosto de 1981, aos 42 anos. A causa, problemas bronco-pulmonares.
Nesta terça-feira, o cineasta é homenageado em sua terra natal, a Bahia, dando nome ao aeroporto da cidade de Vitória da Conquista. Com a polêmica decorrente das palavras de Jair Bolsonaro ao chamar dos nordetinos de “paraíbas”, o governador Rui Costa decidiu não comparecer à festa. O presidente, sim.
Orlando Brito