Zumbi, primeiro herói da independência do Brasil. Mais um dístico no pedestal do guerreiro dos Palmares, pioneiro do abolicionismo e personificação da consciência negra no País. Além de inspiração para a luta contra o racismo e exemplo da afirmação de afrodescendentes, ele deve ser reverenciado como o primeiro líder político a rejeitar o jugo colonial e propor a seus conterrâneos e seguidores a criação de um novo país em terras americanas.
Cem anos antes da Revolução Francesa abolir a escravatura libertando o Haiti (depois a escravidão foi restabelecida nas suas colônias), ele rompeu com o regime escravista que predominava em todo o mundo: Europa, América do Norte, África e Ásia reconheciam o direito de propriedade de seres humanos e tributavam cativos como os demais ativos semoventes.
O primeiro grito contestando essa instituição milenar da Humanidade ouviu-se nas serranias de Alagoas quando Zumbi rejeitou no acordo que seu tio Ganga Zumba fechava com o governador Pedro de Almeida, em 1678, representante do Rei Dom João IV, que concedia autonomia ao território do quilombo de Palmares, mas mantinha a escravidão. Zumbi exigiu a abolição em todo o território da Capitania de Pernambuco. Os portugueses não aceitaram e a guerra continuou por mais 20 anos. Manteve-se intransigente quando o mesmo lhe foi oferecido pelo Rei Dom Pedro II. Recusou novamente e combateu até morte.
Esta é a marca na História do preto crioulo (naquela época ainda não existia o gentílico de “brasileiro”. Os nascidos na colônia eram chamados de “crioulos”, palavra derivada de crias da terra) Francisco de Melo, conhecido pelo nome de guerra de Zumbi dos Palmares. Nascido livre na Serra da Barriga (Pernambuco, atual Alagoas), em 1655, era de família nobre, manicongo (rei, no jargão lusitano) filho de Sabina, irmã de Ganga Zumba, neto de Aqualtune, princesa do Congo, filha do rei Garcia II, irmã do rei Antônio I, morto na batalha de Mswila, em 1665). Zumbi foi casado com Dandara, mulher livre, e pai de três filhos homens: Motumba, Hannodio e Aristogeton.
Neste 20 de novembro, data de sua morte, vale recordar a trajetória de Zumbi e um pouquinho da história dos Palmares: o quilombo durou, como território autônomo, mais de um século. Começa em 1588, com escravos fugidos da Bahia e Pernambuco e termina em 1695. Com a invasão holandesa, em 1630, ganha grande impulso populacional. Os calvinistas batavos atacaram e expulsaram os católicos lusitanos e africanos do litoral. Houve fuga em massa para Palmares. Em 1644 os holandeses tentaram atacar o quilombo, mas foram derrotados e refluíram para o a costa atlântica, deixando os quilombolas em paz.
Embora ainda se conheça pouco sobre a história de Palmares, é muito elucidativo acompanhar os últimos tempos desse episódio, a partir de 1654, depois da expulsão dos holandeses.
Antes, porém é bom lembrar que desde início do século XV, portanto dois séculos antes de Palmares, já os reinos do Congo haviam se convertido em estados cristãos. Os reis congoleses adotaram o cristianismo por razões políticas, para romper com a sucessão pela via materna, introduzindo o princípio do primogênito. Definido por lei que só o filho mais velho do rei teria direitos à coroa, cessaram as guerras de sucessão. Daí a explicação para tantos nomes cristãos dos reis africanos naqueles tempos. Dentre eles, o longevo Gaspar II, pai da princesa Aqualtune dos Jagas (ou Imbangas), a grande matriarca de Palmares e responsável por seu um progresso material e político.
Foi nessa condição de infanta que Aqualtune chegou ao Brasil em 1667 ou 68. Capturada na Batalha de Mbwila, no Congo, foi enviada como prisioneira de guerra para o Forte Elmira, em Gana. De lá veio para Pernambuco, como escrava, grávida e mandada para o Engenho Porto Calvo. Diz a lenda que ela engravidara de um escravo, mas esse cativo possivelmente seria um militar, pois na África daquela época grande parte dos soldados, inclusive os generais, eram escravos. Ela foi escravizada para transmitir essa condição a seu filho. Motivo: possivelmente obter um resgate dos parentes africanos, como era comum com nobres aprisionados e escravizados. Criando direito de propriedade, mesmo sendo um príncipe, para ser alforriado teria de ser comprado. Era a fórmula legal para o resgate.
Não há um registro histórico de como foi que Aqualtune deixou Porto Calvo e foi reaparecer em Palmares (atual União dos Palmares, em Alagoas), no Cerro do Macaco, capital do quilombo. Possivelmente foi comprada pela liderança, pois Palmares já tinha uma atividade econômica com capacidade para pagar o resgate de uma princesa e seu filho Ganga Zumba, já crioulo (ou seja, brasileiro nato). Ela foi imediatamente entronizada. Diz a lenda que ela imprimiu uma administração extremamente dinâmica, construindo um estado de modelo africano conservador, com todas suas hierarquias, como de rei, de general, de senhor, de cliente e tudo o mais. Ela teve dois filhos homens: Ganga Zumba e Gana; e uma filha, Sabina, mãe de Zumbi.
No seu reinado o quilombo de Palmares teve um desempenho econômico, social e político espetacular. A população atingiu 30 mil almas, um número impressionante naqueles tempos, quando a população total da Colônia, mal passava dos 150 mil, descontando indígenas.
Embora o sistema político africano se fundasse no conceito de “Nação” e não contemplasse o sistema de fronteiras, delimitando-se pela área ocupada pelas, diversas etnias, Palmares tinha um certo tipo de limites. Sua soberania ia da margem esquerda do rio São Francisco até o Cabo de Santo Agostinho, um território maior que Portugal.
A capital, Palmares, na Serra da Barriga, contava oito mil habitantes, com 1.500 choupanas e duas avenidas. Havia outras 11 cidades (mocambos, em língua africana) fortificadas com paliçadas: Amaro, com 5.000 habitantes, segunda cidade, Sucupira, Tabocas, Zumbi, Osenga, Acotirene, Danbrapanga, Sabalonga e Andalaquituche. Mais núcleos urbanos que a capitania portuguesa de Pernambuco.
A economia era poderosíssima. Palmares produzia e exportava para o mundo lusitano (na colônia e além-mar) milho, mandioca, legumes, feijão e cana. Uma produção artesanal fornecia esteiras, vassouras, chapéus, cestas, leques, tudo de palha de palmeira. A indústria produzia vestimentas de tecidos feitos de cascas de árvores, manteiga, óleo de noz, coco in natura e processado, principalmente.
Aqualtune instruiu seus filhos e o neto nas ciências da administração e nas artes da guerra. Enquanto Ganga Zumba era preparado para ser o novo rei, a filha Sabina mandava seu filho Francisco para receber educação europeia. Ele foi “dado” ao padre Antônio Melo, que o instruiu nas letras e nos demais conhecimentos. Lia e escrevia em português e latim, coisa raríssima, só para funcionários da coroa e clérigos. Mesmo os grandes fazendeiros eram analfabetos no Brasil daqueles tempos. Aos 16 anos o jovem Zumbi deu-se por completo e foi de volta para Palmares. Aos 20 anos era comandante do Exército.
Em 1670 Ganga Zumba assume o poder. Cinco anos depois Palmares entra em conflito com Pernambuco. Uma força militar comandada pelo sargento-mar (coronel) Manuel Lopes ataca o quilombo. Francisco, já se chamando de Zumbi, comanda a resistência e derrota as tropas coloniais. Foi uma vitória acachapante; o governador Caetano Melo Castro abre negociações e chega a um acordo com Ganga Zumba: Palmares poderia continuar como território autônomo, desde que reconhecesse a soberania portuguesa e restabelecesse a escravidão, embora anistiasse a todos os escravos fugidos que por acaso ainda existissem no quilombo. Ganga Zumba aceitou. Zumbi não.
Abriu-se a crise interna em Palmares. Ganga Zumba morreu envenenado. Zumbi assumiu o poder. Não se pode afirmar que Zumbi tenha matado ou encomendado a morte do tio, nem que tenha dado um golpe de estado. Entretanto, assumiu o poder e sua avó, Aqualtune, deixou a corte e se recolheu (seria desgosto pelo conflito familiar?) para uma reclusão, isolando-se (seria um convento?) onde ficou até morrer aos 94 anos.
Zumbi governou por exatos 20 anos, de 1675 a 1695. Nessas duas décadas aconteceram inúmeras negociações com os portugueses. O próprio Rei Pedro II escreveu a Zumbi propondo que concordasse em jurar lealdade à Casa de Bragança, como tantos outros reis pela África e Ásia. Nunca aceitou. Seu propósito era um País independente, já com uma configuração europeia, ou seja, com fronteiras definidas e reconhecidas. Portugal nunca admitiu esses termos. Claro, acabou em guerra.
Os pernambucanos decidiram enfrentar os quilombolas. Sabiam que suas milícias coloniais jamais derrotariam as tropas de Zumbi. A providência foi “aprontar um paulista”, como se dizia então: contratar soldados profissionais no Sul. Em São Paulo haviam milícias compostas por mamelucos e índios guaranis aculturados com experiência de combate contra espanhóis e indígenas aguerridos no centro oeste e no extremo sul, onde os chamados bandeirantes rasgavam o Tratado de Tordesilhas e promoviam a expansão territorial. Foi ajustado um capitão bandeirante implacável, Domingos Jorge Velho.
Em Pernambuco, o Corpo de Aventureiros Paulistas foi reforçado por uma tropa de infantaria, o Terço de Linha de Recife, comanda pelo sargento-mor português Bernardo Vieira de Melo. Essa força entrou sertão a dentro para submeter os quilombolas.
Foi uma dificuldade pernambucanos e sulistas se entenderem, pois os paulistas falavam apenas a Língua Geral, como se chamava então a língua guarani. Os pernambucanos se comunicavam em Português. Mas acabou dando certo e marcharam juntos para a hinterlândia.
Zumbi teve uma surpresa, pois em vez das desajeitadas milícias do governador, topou com uma tropa nunca antes vista, com armamento moderno, treinamento esmerado, uma velocidade de deslocamento nunca vista. Os paulistas venceram os primeiros embates, destruindo a maior parte do exército quilombola.
Zumbi recuou para o interior e começou a reagrupar suas forças e recrutar novos combatentes, sempre com os paulistas nos seus calcanhares. Então se deu a desgraça: traído por um de seus oficiais, Antônio Soares, foi levado para uma emboscada e preso. Um oficial português, o capitão Furtado de Mendonça, entrou na cela e executou o líder quilombola. Era o fim.
Morto Zumbi a guerra foi dada por finda. Para provar ao governo que Zumbi estava morto, sua cabeça foi cortada e salgada (Para não arruinar) e levada para Recife. O governador Caetano de Melo mandou espetá-la num poste e exibir numa encruzilhada para que todos vissem que o líder rebelde estava morto. Assim Zumbi deixou a vida e entrou para e lenda, pois, como significava seu nome na sua língua de Angola, zumbi é uma entidade que vive entre os mortos e os vivos.
Terminada a guerra, a antiga Nação dos Palmares foi reincorporada à Província de Pernambuco. Zumbi deixou três filhos, mas não se sabe de seus destinos. Como não eram escravos, filhos de mãe livre, certamente reincorporam à comunidade dos pretos nordestinos.
Zumbi ficou como uma lenda entre o povão, mas submerso na História, até ser relançado como emblema da luta dos negros no Brasil pela liberdade. Falta outorgar-lhe o título de herói da independência. Esse reconhecimento já foi dado ao índio Sepé Tiaraju, que tentou estabelecer um território autônomo na região dos Sete Povos das Missões (1775), no oeste do Rio Grande do Sul, resistindo às determinações de Madrid e Lisboa de deportar seu povo. Seu nome estanho livro dos Heróis, em Brasília. Outro que também levou mais de cem anos para ser reconhecido foi o mineiro Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, que, em 1789, tentou fazer a independência de Minas Gerais. Zumbi tem de estar entre estes, sem desmerecer suas lutas pela dignidade do ser humano escravizado.