A História se repete como farsa, já dizia Karl Marx, o que sugere um cuidado a seus atores quando se apegam a experiências do passado como linha para recompor projetos políticos frustrados. A postura “negacionista” da esquerda, que foi seu cavalo de batalha desde a redemocratização até tomar o poder em 2002, indica que suas lideranças estariam propondo repetir o modelo que deu certo lá atrás. Para isto, desde já se explicaria o gesto clássico dessa facção, negando-se a reconhecer a posse do presidente eleito Jair Bolsonaro.
Numa análise deste processo histórico, “à vol d’oiseau”, com sabor jornalístico, um repórter diria (depois de ouvir, citando especialistas), que a situação é outra, que o País evoluiu. A começar pelo vagalhão metafórico.
Essa esquerda que se rebela contra as urnas chegou ao Palácio do Planalto num processo de ondas sucessivas, como no surfe, iniciado lá atrás, no Colégio Eleitoral (expulsando Bete Mendes e Airton Soares), passando pela Constituinte (votando contra a Carta), por Itamar Franco (originário da facção dos Autênticos do MDB – foi expulsa a ministra Luiza Erundina), passando por Fernando Henrique Cardoso (Fora FHC), social democrata moderado, mas já originário do Partido Comunista, até chegar a Lula, o líder clássico, saído do chão de fábrica, até parar na ala revolucionária dos anos 1970, oriunda da luta armada, com Dilma Rousseff e que tem hoje na sua segunda geração, Gleisi Hoffmann e Fernando Haddad no comando da linha de frente.
A esquerda da rebeldia
A primeira grande diferença é que a esquerda não está mais sobre a onda que veio para cobrir “o que está aí”. Pelo contrário, os partidos rebelados foram os atingidos pelo tsunami. Eles constituem “o que está aí”. Embora jovens, seus líderes (além de Gleisi e Haddad, há Manuela d’Ávila (PCdoB)– que desbancou à formidável Luciana Genro (fundadora do Psol) no Extremo Sul) e Marcelo Freixo (do Psol carioca, personagem central do filme Tropa de Elite), coadjuvado por seu correligionário Jean Willys, lançado na política pelo programa Big Brother, da Rede Globo).
Esse quadro de liderança revela jovens talentos em todas as agremiações e diversifica a hegemonia de São Paulo, aqui representada pelo jovem professor da USP, Fernando Haddad (no lugar dos veteranos Lula, Vicentinho, Jair Meneghelli e outros formados nos sindicatos da indústria Metalmecânica do ABC). A seu lado e tão influentes quanto o ex-candidato presidencial, estão Gleisi, do Paraná, Manuela, do Rio Grande do Sul, e Freixo, do Rio de Janeiro. Paradoxalmente, a força específica do partido, representada por governos eleitos, está nos pequenos estados do Nordeste, a antítese socioeconômica do Sul-Sudeste.
Voltando à análise do suposto especialista, ele certamente diria que o “Queremismo do Século XXI” demonstraria um desempenho muito diferente entre seus dois inspiradores. Getúlio Vargas e Luiz Inácio Lula da Silva. A começar pela situação dos dois: Vargas esperou a volta ao poder numa fazenda distante no interior da remota Itaqui, nos confins do Rio Grande do Sul; Lula aguarda o retorno numa cadeia, na cosmopolita Curitiba, coração do próspero Paraná. Nada errado, pois não são poucos os estadistas que saíram diretamente de uma cela de prisão para as cadeiras presidenciais. Exemplo recente: Nelson Mandela.
Entretanto há diferenças, algumas sutis outras não, entre a trajetória dos dois para o retorno ao poder. Como Lula, Vargas colocou seu “poste” guardando o lugar, Mas Getúlio designou um general do Exército que, além disso, não seria visto como uma marionete. Já Lula botou uma seguidora fiel à sua esquerda. A semelhança entre Dilma e Dutra é que nenhum dos dois era um quadro com liderança real dentro dos partidos governantes, PSD e PT. Isto facilitou a retirada para abrir a vaga de candidaturas.
Getúlio, apeado convenientemente do poder por um golpe simplista, assumiu a posição de vítima, tal qual Lula com o impeachment de Dilma. Entretanto, Vargas voltou num rali estonteante, saindo da obscuridade à frente de dois partidos fundados por ele, PSD e PTB, que lhe deram uma maioria parlamentar sólida.
O contrário foi com Jânio Quadros, nos anos 1960, líder populista à frente do mínimo PTN (Partido Trabalhista Nacional), ou de Fernando Collor, nos anos 90, com seu PRN (Partido da Renovação Nacional), agora revivido pelo deputado Bolsonaro.
Certamente o PT espera que o novo presidente despenque que nem seus antecessores fenomenais, abatidos pelo chamado “estelionato eleitoral”. Jânio foi eleito prometendo acabar com os privilégios dos funcionários públicos. Fracassou, pois seu único legado foi o dístico “Uso exclusivo em serviço” nos carros chapas brancas. Collor não conseguiu acabar com os “marajás”, desmoralizando-se quando o Judiciário mandou readmitir os funcionários demitidos. Bolsonaro entra propondo acabar com os privilégios previdenciários dos servidores. Será que será?
Voltar aos anos 1980 foi a estratégia escolhida pelos líderes do PT e seus partidos aliados, PCdoB e Psol, a se iniciar pelo espetáculo das cadeiras vazias na Posse. Outras forças se preparam para ocupar o lugar da oposição. Cada qual com sua tática. A primeira tática desses outros adversários do governo do PSL é não brigar com a urna. Ciro Gomes, João Doria e Eduardo Leite estão aí se apresentando para entrar em campo. Quem ver, verá, diria o velho Karl.