O Brasil tem 6 ex-presidentes da República vivos. O conjunto forma um cabedal importante, pois reúne uma memória exclusiva e experiência incomparável.
Do grupo, apenas 2 completaram os mandatos para os quais foram eleitos nas urnas; ambos escolheram vices leais. Dois foram apeados, legal e constitucionalmente, do cargo.
Dois chegaram à Presidência da República, na prática, sem terem votos. Dois retornaram à política pela via eleitoral.
Grosso modo, 3 pertencem à chamada direita. Outros 3 se acomodam na chamada esquerda.
Dois desprezaram o apoio parlamentar e foram depostos. Dos seis, apenas um teria votos para voltar à Presidência da República.
Todos enfrentaram turbulências econômicas e políticas. Todos reclamaram da imprensa.
Democracia em construção
Somados seus integrantes, o sexteto tem mais de 30 anos de experiência. Sabem muito sobre o funcionamento da administração pública. Foram protagonistas da íntima relação do Estado com o grande empresariado e a banca argentária.
Pelo que acertaram e pelo que erraram, o grupo deveria ser ouvido com mais frequência. Não é o que acontece. Talvez pela nossa, até hoje, tumultuada reentrada na atmosfera democrática do pós-ditadura.
Cada um deles conviveu com o poder militar. Poder que não deixou de permear a vida republicana do Brasil com o fim da ditadura militar, mas camuflou-se nos quartéis.
Antes, na inesperada posse do presidente José Sarney e nas deposições dos presidentes Fernando Collor e Dilma Rousseff, os milicos foram consultados. E aquiesceram.
Agora, com o presidente Jair Bolsonaro, o protagonismo da caserna está novamente escancarado. Deixaram os bivaques e acamparam na Esplanada dos Ministérios.
Sem farda, mas comandantes
Diferente dos anteriores, o arranjo político-militar do Governo Bolsonaro é inédito. Os milicos predominam na administração federal.
Em oposição aos tempos da ditadura militar, os generais subiram a rampa do Palácio do Planalto pelo voto. Uma parte expressiva do eleitorado referendou a militarização do Governo Federal.
Muito se especula até onde os comandantes militares irão com Jair Bolsonaro. Ou, se por outra via, pretendem dispensar o capitão-mor ora presidente para assumir diretamente o comando da Nação, desta vez com o generalato no comando.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tem uma opinião.
FHC não abandonou a política, mas desistiu de tentar novamente a presidência. Talvez por que não tivesse condições de vencer outra vez.
De qualquer jeito, posicionou-se como os ex-presidentes nos EUA, onde apenas uma reeleição é permitida. Findos seus mandatos, tornam-se experientes conselheiros políticos para quem os quiser ouvir.
Aceita no Brasil, a possibilidade de mandatos infinitos turva o raciocínio, pois estratégias eleitorais e políticas são distintas. O apego ao voto fala mais alto. De qualquer modo, advertências e análises de ex-mandatários merecem ser ouvidas.
O contágio do “gosto pelo poder”
Numa recente entrevista à Agência EFE, FHC disse temer que os militares tomem “gosto pelo poder”. Numa linguagem entre a sociologia e a diplomacia, concluiu que, com isto, a “unidade democrática morre”.
Fernando Henrique foi o presidente que convenceu os generais a rebaixar quatro ministérios militares para o segundo escalão. Fundiu-os todos na pasta da Defesa, comandada por um civil.
“Aqui também [como no Chile, de Salvador Allende], quando os governos não são fortes, eles dependem das Forças Armadas, e acho que isso é um risco para as Forças Armadas, porque elas passam a ter gosto pelo poder”, analisou FHC à EFE. “Isso ainda não aconteceu aqui, mas pode, porque há muitos (militares no poder), e cada vez mais”.
Para ele, “se as Forças Armadas, independentemente do que possa acontecer, se colocarem na posição de apoiar incondicionalmente o presidente, isso é grave, e a unidade democrática morre”. Mas ressalva: “Não acho que estejamos nesse processo, e não acho que essa seja a opinião das pessoas ativas nas Forças Armadas”.
Bem, se limarmos a linguagem diplomática de Fernando Henrique, há razões para crer que o “gosto pelo poder” bafeja os fardados de fatiota. Por mais que lhes desagrade receber ordens de um capitão despreparado, desarrazoado e beligerante, os milicos detêm hoje o poder de conduzir os rumos insondáveis da Nação em tempo de coronavírus.
Moderado desconhecido
Quando, do outro lado da polarização que nos assola, se avizinham grupos extremos da chamada esquerda, devem os generais, pela força do hábito, ajustar o quepe que lhes cobriu as melenas por décadas e cogitar: “Vamos entregar de novo o País à esquerda?” Afinal, como já escrito aqui n’Os Divergentes, não há sombra do moderado desconhecido, aquele que nos salvaria dos radicais hoje preponderantes na política.
Este “gosto pelo poder” pôde ser visto n’O Estado de S. Paulo desta quinta, 14, em artigo do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, lídimo representante das Forças Armadas. De uma só vez, exortou a imprensa, os presidentes de outros poderes, os ambientalistas, os parlamentares, chamando a uns de “usurpadores”, a outros de “inconformados”, a terceiros de “insensatos”, a quejandos de “levianos”.
General de quatro estrelas, Mourão foi ele mesmo, tomando por base seus antigos arroubos verbais. Agora, porém, mais do que representante de inquietos militares de pijama, o vice é um virtual presidente num país que já empossou três vice-presidentes na nossa interminável transição rumo à consolidação democrática.
Fosse Bolsonaro um presidente razoável, equilibrado e sensato, ouviria seus antecessores. Mas, se os ex-mandatários pouco o fizeram, por que ele o faria?
Resta, quem sabe, à imprensa profissional buscar e ouvir a sensatez, o equilíbrio, a razoabilidade que nos tire desta medonha polarização que assola o Brasil. Polarização, aliás, chamada apropriadamente de “praga” por Mourão em seu artigo. Enquanto o moderado desconhecido não surge, é o que nos resta.