A arte da dissimulação é intrínseca à política. Quando as decisões e as atitudes não parecem palatáveis ao povo, o recurso do dirigente político é fazer o que é parecer o que não é.
Isto vale para tempos de paz (“não se trata de corrupção, mas da luta pela causa”) e de guerra (“a Rússia não invadiu a Ucrânia, realiza uma operação militar especial”). Quando um governo libera verbas públicas a mancheias em ano eleitoral justifica-as com uma crise – real ou fictícia.
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Na política externa, a chamada esquerda usa artimanhas, às vezes bem elaboradas, com o objetivo de destruir o “imperialismo estadunidense”. A obsessão permeia parte expressiva do discurso daqueles que se dizem “de esquerda” no Brasil. Não se trata apenas de fazer oposição, o que é legítimo, mas tornar virtuosa a destruição de um país e o que ele representa, desprezando, para isto, princípios como liberdade, diversidade, igualdade e democracia. Princípios os quais, contraditoriamente, jura defender.
Cuba cerceia os direitos humanos, amordaça a imprensa, persegue homossexuais e prende opositores, além, claro, de ser uma sólida ditadura, nefasta como todas as ditaduras, de qualquer naipe. Assim como o apoio à Venezuela e à Nicarágua, autocracias cucarachas, tudo se justifica se o alvo for liquidar os EUA.
A Ucrânia é só um detalhe
O autocrata da Rússia, Vladimir Putin, está promovendo carnificina na Ucrânia, uma nação independente e, como agora se vê, habitada por um povo disposto a lutar por seu território, sua liberdade e decidir o destino de per si. Ao arrasar residências, hospitais, escolas, teatros e creches ucranianas, Putin promove a barbárie como instrumento de poder no lugar da diplomacia, da negociação, do convencimento e da democracia.
Para o professor da USP, Pablo Ortellado, autodefinido como progressista e oposicionista, “é perturbador acompanhar o debate na esquerda sobre a invasão à Ucrânia”. Em seu artigo, onde questiona o apoio à Rússia, vale-se de um parágrafo inteiro para lembrar que as “as violações aos direitos humanos lá [na Rússia] são tão numerosas que é difícil resumi-las“.
A razão oculta, pero no mucho, é o ódio incontido aos EUA. Israel, democracia solitária cercada por regimes opressores, também é alvo da intolerância que estes militantes ruminam em suas vísceras, neste caso, acrescido do antissionismo.
No Brasil, blogs ligados aos que se definem como “de esquerda” (“independentes” é um eufemismo debochado) reproduzem justificativas para os ataques covardes promovidos pelo Exército Vermelho, ignorando a violência do czar do século XXI. Sem dizer, sancionam a Guerra na Ucrânia e o massacre de seu povo.
Meu imperialismo é melhor que o seu
Existem razões para que a Rússia tema o avanço da Otan sobre o leste europeu? Provavelmente. Citando o estrategista norte-americano George Kennan, o professor da UFRGS, Denis Rosenfield, define como um “erro trágico” “esta reorientação da Otan” pós-Guerra Fria. Porém, “foram as populações do Leste [europeu] que, democraticamente, fizeram sua opção [pela Otan e pela União Europeia]“, como escreveu o jornalista Carlos Alberto Sardenberg.
O interesse dos EUA em se tornarem potência dominadora não é ficção, mesmo ímpeto que acometeu a finada URSS. Hoje, como os EUA, a China e a Rússia do século XXI parecem disputar esta posição de hegemonia. Difícil saber o que se passa pela cabeça inescrutável de Putin, mas seria ingênuo acreditar que ele municiou a Rússia com o maior arsenal atômico do Planeta apenas para se defender. A Coreia do Norte consegue repelir adversários com um arsenal atômico infinitamente menor.
Diante disto, qual é o melhor imperialismo? O norte-americano, o russo ou o chinês? Nenhum. Mas é indiscutível que, enquanto China e Rússia são regimes fechados e autoritários, os EUA são uma democracia – permeável, inclusive, a cidadãos russos e chineses. Qualquer um é livre para ir até as cercas da Casa Branca (Washington) e xingar o presidente Joe Biden, ou mesmo processá-lo judicialmente. Difícil é fazer o mesmo em frente ao Kremlin (Moscou), com Putin, ou em Zhongnanhai (Pequim), com Xi Jinping, e sair ileso.
Entre parêntesis, registre-se que uma das contradições dos anti-norte-americanos é a explícita preferência de parte do mundo pelos países ocidentais desenvolvidos, seus costumes e seus produtos. Uma ilustração mezzo alegórica, mezzo realista é a do camarada que, vestindo jeans, dedilhando um iPhone, plugado na internet, saboreando um MacDonald’s, curtindo rock, tomando Coca-Cola, grita “abaixo o imperialismo ianque”. Outra é a preferência de refugiados do mundo todo pela vida nos EUA e na Europa, onde prevalecem o capitalismo e a democracia. Não há dados sobre a afluência de pessoas para Cuba e Coreia do Norte.
De volta à Guerra na Ucrânia, Ortellado repreende a chamada esquerda brasiliana. “Uma coisa é denunciar e combater todas as formas de imperialismo, inclusive o americano. Outra, bem diferente, é defender as ações imperialistas de um autocrata sanguinário, apenas porque equilibraria o jogo de forças no cenário mundial”. Quem conhece e conviveu com a esquerda antidemocrática faria um adendo ao comentário do professor da USP. Não há apenas interesse em equilibrar o jogo de forças, mas adotar outra forma de imperialismo, provavelmente nos moldes do centralismo democrático – claro, aniquilando os EUA.
Liberdade para dizer “sim”
A Guerra na Ucrânia – como a da Síria, por exemplo – é um horror. Justificá-la desvela instintos atávicos beligerantes dos animais, humanos incluídos, onde as divergências são resolvidas na força, mesmo que custe a vida de inocentes. Como já leram meus 17 leitores, o dualismo esquerda x direta é um desserviço conceitual, por impreciso e ilusionista. Hoje, indica agrupamentos com princípios difusos e intercambiáveis cujo objetivo primordial é dominar a política e subjugar adversários. Não representa conceitos essenciais da vida gregária harmoniosa e respeitosa – liberdade, diversidade, igualdade e democracia.
Como, porém, aqueles conceitos persistem, torna-se oportuna uma atualização conceitual mais realista. Na comunicação – a arte de dizer o que se quer & entender o que lhe parece -, o que sobra quando se afirma “ele é de esquerda”? Ora, ele defende o povo. E “ele é de direita”? Ah, ele defende a liberdade. São epítomes falsos, que emburrecem o debate político. Assim, num exercício que evitaria parte da empulhação a qual nos submetemos, ser de esquerda é, antes de qualquer princípio moral, ser anti-EUA. Como toda simplificação leva a distorções, mas, pelo menos, é verdadeira.