Nos tempos do imperador censurado

Nos Tempos do Imperador, novela das 18h, enaltece as qualidades de negros e índios, enquanto rebaixa os brancos, principalmente os homens. Para a militância patrulheira, a trama da TV Globo é racista

Diversidade

Se um timorense assistisse à novela Nos Tempos do Imperador até o capítulo de sábado, 11, formaria uma imagem peculiar do império brasiliano sob Dom Pedro II. Este espectador, que conosco teria em comum apenas a língua, construiria em seu imaginário um Brasil de negros, índios e brancos de caracteres díspares.

Para o curioso timorense, que nunca lera sobre história do Brasil, negros e índios seriam todos íntegros, inteligentes, igualitários, laboriosos, solidários e benevolentes. Brancos, por sua vez, carregariam o labéu da burrice, da mesquinhez, da intolerância, da malemolência, da desonestidade e da maldade.

O desavisado adventício pouco entenderia, assim, as críticas à trama de época. A novela das 18h, da TV Globo, foi desaprovada por exibir “racismo reverso”, segundo uma respeitada intelectual, apoiada de pronto por artistas, colunistas de TV e militantes. Uma das críticas refere-se à cena entre um personagem negro (Jorge/Samuel) e sua namorada branca (Pilar). Ele, um destemido escravo fugitivo; ela, uma jovem idealista que luta pelos direitos das mulheres.

Os atores Michel Gomes e Gabriela Medvedovski, protagonistas em “Nos Tempos do Imperador” – Foto: João Miguel Júnior / TV Globo

Depois que Pilar (Gabriela Medvedovski), por ser branca, não foi aceita como moradora da Pequena África, reduto de negros libertos no Rio de Janeiro, Jorge (Michel Gomes) reclama, pois brancos e negros devem ter os “mesmos direitos”. A crítica à cena despreza a inteligência dos noveleiros.

A virtude é preta

Na trama, não há homens brancos virtuosos. E as personagens femininas brancas têm, quase todas, algum vício de caráter. Entre os negros, apenas duas personagens aparecem com algum “defeito”, mas uma delas se redime. O defeito da outra são ciúmes pueris.

Na série, índios são protetores da natureza e visionários sobre a destruição ambiental que virá pela mão dos brancos. Numa cena, a imperatriz Teresa Cristina (Leticia Sabatella) desabafa: “Eu pergunto: Qual dos dois povos é mais primitivo? Se os indígenas ou se nós?”. Noutra, ela enaltece a “cacica” Jacira. Jorge, que vira professor de árabe do imperador, faz uma constatação profética: “Por mais que a escravidão acabe, este pensamento tacanho das pessoas permanecerá”. Guebo (João Victor Menezes), menino negro alforriado, resiste a frequentar escola de brancos.

Personagens de “Nos Tempos do Imperador”: o imperador Dom Pedro II, Luísa (condessa de Barral) e a imperatriz Teresa Cristina – Foto: João Miguel Jr / TV Globo

A novela da Globo pode ser tachada por enaltecer sobremaneira as virtudes de negros e índios e rebaixar em demasia os defeitos dos brancos. Os autores não têm que se justificar, mas poderiam seguir o exemplo de um colega mais experiente. Anos atrás, diante dos críticos, este autor que criara um vilão gay para uma novela das 21h disse que o personagem era dele e seria como ele quisesse.

Patrulha ideológica 

As críticas, no entanto, vão além e resvalam para o campo perigoso da censura. “Sabemos que se esse país fosse sério, novelas que romanceiam a colonização nem poderiam ser feitas. E, quando feitas, no caso de um desserviço dessa natureza, seriam devidos capítulos de reparação e indenização à coletividade. Em casos reincidentes, a série seria interrompida, seus responsáveis afastados e de fato haveria preocupação em contratar profissionais negros”.

Por trás desta patrulha, cada vez mais persecutória, um equívoco e duas ameaças.

Há algum tempo parte expressiva da grande mídia rendeu-se à pauta de costumes. Tanto que a autora da novela das 18h pediu desculpas e a emissora deve rever os próximos capítulos. TV Globo e Folha de S. Paulo, especialmente, encamparam as agendas das feministas, dos ambientalistas, dos LGBTs e do movimento negro. Tomar ambos por adversários é um equívoco, tanto que esta conversão da mídia tradicional é uma das queixas que unem gente retrógada, como a que tomou as ruas recentemente.

A primeira ameaça vem de uma antiga, e nunca abandonada, bandeira da chamada esquerda. Censurar a imprensa (caminho para tutelar as artes), por meio de eufemismos como “regulação da mídia”, é propósito recorrente dos autoritários de todos os matizes – venham da Hungria ou de Cuba.

Outra ameaça é apropriação de algumas pautas por grupos de domínio excludentes. Somente ativistas negros podem falar de negros, só feministas podem falar de mulheres, militantes gays são os únicos com permissão para falar de gays. A patrulha expandiu-se de tal forma que artistas, jornalistas e intelectuais morrem de medo da militância patrulheira sob pena de serem chamados de reacionários ou cancelados. Diante da sanha arbitrária, calam-se ou aquiescem irrefletidamente.

Antirracismo democrático

Ao contrário da novela, espelhada na história brasiliana, o racismo não é obra de ficção. Ele existe, é ignominioso e desagregador das relações humanas numa sociedade que se pretenda democrática, fraterna e solidária. Receber um salário menor, ser alvejado por uma bala ou apontado como o suspeito de um crime por ser preto faz parte da rotina infame de milhões Brasil adentro.

Não será, porém, com patrulhamentos ideológicos e imposições comportamentais que estas causas ganharão apoio genuíno em vez de seguidores amedrontados. O caminho da intimidação ideológica é abre-alas para o autoritarismo explícito. Este espaço, no Brasil, está ocupado pelo capitão-mor, hoje a principal ameaça à democracia e à liberdade.

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