Ao xingar a senadora Gleisi Hoffmann de “corrupta” e “ladra” num voo na última terça, 19, uma passageira expressou opinião generalizada entre os brasileiros. ‘Políticos, de um modo geral, são corruptos’ pode ser a síntese desse pensamento amplificado em tempos de Lava-Jato.
Os insultos da xingadora, no entanto, revelam duas faces do mesmo equívoco. Desconsideram a responsabilidade do eleitor na formação do atual Parlamento e concentram na capital da República todos os males brasileiros, redimindo todo o restante.
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Quando a xingadora diz que “o povo brasileiro quer gente honesta” tenta estabelecer distanciamento entre a massa amorfa, o eleitorado, e o Congresso Nacional, igualmente heterogêneo. Seu brado não leva em conta, por exemplo, que parte dos parlamentares, há muito suspeitos de rapinagem, conquistaram ou retomaram suas cadeiras pelo voto.
Na mesma linha, a xingadora se vale de expressão bastante utilizada: “Você e seus políticos lá de Brasília”. Com a frase, além de rebaixar todos os políticos as rés da corrupção, distancia-se do problema.
Não é metonímia
Sempre que alguém joga para a capital federal a origem da corrupção cria uma quimera. Eliminados os malfeitores de Brasília, restará o povo honesto, vítima dos meliantes do erário.
O gesto de indignação pode parecer uma metonímia, mas tem mais cara de autocomplacência, fuga, dissimulação ou alienação. Ao jogar para Brasília a culpa pelas tragédias brasilianas, o xingador exime-se de responsabilidade.
Pode não haver dolo neste gesto. A responsabilidade, porém, é incontornável.
O isolamento da capital facilita sua tendência para alvo. No protesto, a mesma xingadora que detona “os políticos de Brasília” aponta a saída: “Nós, paranaenses, vamos fazer esse favor pro povo brasileiro”, qual seja, não reeleger a senadora suspeita de corrupção e ré na Suprema Corte.
“Pode não haver dolo neste gesto.
A responsabilidade [do eleitor], porém, é incontornável.”
A mistificação do significado de Brasília esconde uma fuga do espelho. Como se inimputáveis fossem, os eleitores são vítimas, não têm responsabilidade. Apesar deles, o Brasil é vítima da ladroagem. É o mito da Brasília corrupta.
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Criam-se máximas sonoras, mas sem lógica. Uma delas – “esse Congresso não me representa” – poderia ser o retrato da incapacidade de eleger gente honesta. Ou de que não haveria, em meio à escumalha, cidadãos honestos interessados na política.
Terra de ladrões
Ao praguejar contra Brasília, o eleitor desconsidera ainda a matemática e a geografia. Como se os 594 parlamentares federais tivessem sido gerados na capital.
A porção de culpa de Brasília resume-se a 11 parlamentares (8 deputados federais e 3 senadores). Os demais 583, inclusive a senadora insultada, foram obra dos eleitores de 26 estados.
Parte dos chamados “ladrões” e “corruptos” são reiteradamente sufragados pelos eleitores País adentro. Se “o povo brasileiro quer gente honesta” pode começar por deixar de reconduzir os suspeitos de sempre.
As invectivas da xingadora lembram outro voo, quase anônimo, d’uma época quando não existia celular. Ao aterrizar em Brasília, um passageiro gracejou: “Chegamos na terra dos ladrões”.
Uma passageira nativa rebateu de pronto a pilhéria. “Aqui só tem 11. Todos os outros vocês é que mandaram pra cá”.