Tirante os simplórios e os nefelibatas, todo cidadão brasiliano ao menos desconfia que o Brasil corre o risco de ver brotar por aqui um novo regime autoritário. As ameaças rotineiras do capitão-mor e nosso histórico de quarteladas dão vazão aos receios democráticos.
No século XX, foram 6 golpes e 14 levantes contabilizados pelo jornalista Elio Gaspari. Os milicos daqui, com auxílio prestimoso das vivandeiras, são useiros e vezeiros em desfazer da democracia nativa. Os sinais da caserna, com generais reverenciando o “mau militar”, justificam a inquietação.
Se depender apenas do presidente do Brasil, o golpe na liberdade virá. Ao modo antigo, com canhões a mirar as cúpulas do Congresso Nacional e a Corte Suprema, ou nalguma forma modernosa de tirania, como um pseudoestado de direito dando vida longa a um tiranete, pois Jair Bolsonaro é tosco ao extremo para se preocupar com aparências.
Vozes de 1964
Dois líderes que anteviram o rompimento democrático que viria a ser o mais longo da história do Brasil ressoam do passado. Às vésperas do golpe militar de 1º de abril de 1964, Tancredo Neves, líder do Governo na Câmara, pressentia: “Deus faça com que eu esteja enganado, mas creio ser este o passo do presidente [João Goulart] que irá provocar o inevitável”. Num avião, do Rio de Janeiro para Recife, o governador pernambucano Miguel Arraes foi mais categórico: “Volto certo de que um golpe virá. De lá ou de cá, ainda não sei”. Veio de lá.
Como há 57 anos, as evidências disparadas pelo hodierno mandatário a seus sequazes são hialinas. Incapaz de sutilezas, qualidade de mentes refinadas, mas coerente, o capitão-mor prega o revés democrático desde os tempos que habitou o folclore da Câmara dos Deputados. Defende ditadores e ditaduras com desabrido despudor. Bolsonaro nunca foi um democrata.
Insondável quantos, entre seus 57,7 milhões de eleitores em 2018, comungavam desta sanha antidemocrática. O contingente de golpistas hoje deve ser pequeno – o que não redime o mal que aqueles brasilianos eventualmente arrependidos já causaram à instabilidade institucional do Brasil, mesmo que involuntariamente. Agora, a decantação política destampou o restolho; sobraram os antidemocratas dispostos a marchar ao lado do presidente da República rumo à ilegalidade.
Democratas x antidemocratas
Diante do imponderável autoritário, somente a depuração entre democratas e antidemocratas poderá assegurar que o Brasil estenda seu mais longevo período democrático, hoje com 36 anos ininterruptos, para além de 2022 – ou 2021. Para isto, no entanto, não bastará que os democratas superem em número os antidemocratas. Precisarão insurgir-se de forma explícita e sonora contra o liberticídio e às ameaças à democracia proclamadas pelo presidente e sua turba sediciosa.
Diante da vontade declarada de estilhaçar a, vê-se agora, ainda frágil democracia nativa, não restará espaço à neutralidade, às abstenções ou aos distanciamentos cívicos. Nova derrota da democracia representará um retrocesso inestimável ao Brasil do século XXI. Primeiro, porque, instalado, o regime autoritário não marca a hora do fim do jogo e as prorrogações são a regra. Depois, porque as nefastas consequências perduram por tempos, como na devastação da natureza que se sucede às intempéries mais severas.
Razão e temperança
A luta pela sobrevivência democrática torna-se ainda mais imbricada diante das perspectivas belicosas para as eleições de 2022, num jogo de polarização extrema entre bolsonarismo e petismo. As opções são indigestas, pois o cenário bipolar recende insanidade.
Esta incerteza não é periférica, mas a essência do que levou o Brasil à nova encruzilhada entre democracia e autoritarismo. A iminente escolha entre extremos sufoca o ambiente político, espargindo o ódio e contaminando o diálogo racional. A cólera é ignara e má conselheira.
O moderado desconhecido, quem poderia conduzir as eleições para um plano de racionalidade e mediação entre extremos, ainda não se apresentou. Brasilianos preferem, no lugar de moderados, orbitar entre polos antagônicos e em permanente conflito.
Hoje, o âmago de nossos embates reside no medo e na consequente intransigência que um lado nutre pelo outro. Bolsonaro é a figura que materializou a ojeriza ao que os governos corruptos do PT significam, como fartamente atestados pelo Mensalão e pela Lava-Jato. Ele não representa a si mesmo, mas o medo à volta da corrupção, à pauta de costumes, ao estado mastodôntico e às ditaduras amigas, temores que unem alhos e bugalhos contra o retorno do PT. Desatinos de mão dupla.
No mato, sem mediação
Neste cenário labiríntico, e sem a presença de um condutor moderado rumo à normalidade institucional, a escolha incontornável pela democracia vem permeada de insegurança eleitoral. Prosseguir no embate bolsonarismo x petismo manterá nossa agonia. A recondução do bolsonarismo implicará o prolongamento da ameaça golpista. A vitória do petismo irá rearmar os sequazes antidemocráticos que, no pleito de 2018, deixaram sem vergonha as profundezes lúgubres onde se escondiam para pregar abertamente o rompimento democrático.
Remover antecipadamente o mandatário do Palácio do Planalto pode não interessar nem mesmo ao petismo que preferirá enfrentar o capitão-mor em 2022 a um moderado desconhecido capaz de derrotá-lo. Além disto, o bolsonarismo tem ainda apoio suficiente nas ruas e o Parlamento mostra desinteresse em depor o presidente eleito.
Diante deste cenário nebuloso, onde a ameaça liberticida vai martelar o estado democrático de direito até o dia seguinte às eleições de 2022, o Brasil carece de mediadores qualificados. Os juízes do Supremo Tribunal Federal, ao abdicarem do distanciamento intrínseco às togas para adentrar na seara da política, perderam naco sensível da credibilidade da qual desfrutavam – semelhante ao que ocorreu com os fardados de fatiota.
O zigue-zague de decisões erráticas fez fenecer o distanciamento que deve guiar magistrados. Ora incensaram a Lava-Jato, ora contra ela se rebelaram. Na luta raivosa com o justiceiro Sergio Moro, o xerife Gilmar Mendes primou pelo gestual de parlamentares desqualificados, como foi Bolsonaro por 27 anos. Em vez de se limitarem a julgar, os sufetas supremos pularam no ringue político.
Os xerifes Dias Toffoli e Alexandre de Moraes promoveram um ataque ao direito quando instauraram um inquérito onde acusam, investigam e julgam. O elementar no direito foi ignorado: quem acusa não julga, quem julga não acusa. Desqualificaram-se antes do início do jogo pesado pela sobrevivência da democracia. Agora, em vez de julgadores, são vistos como parte do problema.
É neste cenário pantanoso que se dará a refrega cada vez mais inevitável, da democracia versus autoritarismo.
Em tese, todo o resto deveria ser relevado pela preservação da democracia. Contra os antidemocratas, em ordem unida com o bolsonarismo, erguer-se-iam os democratas coesos. Como naqueles filmes onde um grupo de pessoas perdidas no meio do mato, antipatizando umas com os outras, vagueiam desorientadas. Na luta pela sobrevivência, unir-se-iam pelo estado democrático de direito.
A prioridade é a democracia, que requer resistência ao arbítrio, enfrentamento ponderado dos dissensos e resiliência contra seus agressores. Assim agem os democratas. O resto são laivos do bolsonarismo.